domingo, 24 de julho de 2016

O PT não leva a sério o golpe que denuncia

| domtotal.com
Partido mandou votar em suposto golpista (até ontem) para presidir a Câmara.
Não é como partido, mas como quadrilha de festa junina que o PT se movimenta.
Não é como partido, mas como quadrilha de festa junina que o PT se movimenta.

Por Eugênio Bucci*

Mas o que é que anda acontecendo com o tal Partido dos Trabalhadores (PT)? Duas hipóteses. A primeira é simples, campestre, quase inocente. Se soar um tanto jocosa, a responsabilidade deve ser debitada ao objeto em questão, não ao humor de quem apenas toma notas. A piada vem da realidade, como logo se verá. A segunda hipótese parecerá menos cômica e mais trágica, mas, fique bem claro, não passa de uma hipótese. Passemos logo à primeira.

Não é como partido, mas como quadrilha de festa junina que o PT se movimenta. É como quadrilha que ele dança. Nhô Lula, embalado pelos trinados da sanfona e animado pelo gengibre do quentão, passa a mão direita no microfone e com a esquerda tira o chapéu de palha da cabeça para erguê-lo bem alto, como a pedir a atenção dos circunstantes. Quando atrai os olhares para si, estufa o peito e dá o alarme: “Olha o golpêêê!”.

Pronto, é o que basta. O volume da música se eleva. Os casais se excitam. Obediente ao comando de Nhô Lula, o cordão dos intelectuais, que cada vez aumenta mais, vai batendo as rangideiras de dois pés esquerdos contra a terra batida da roça ideológica, Ouve-se a cantilena de hermenêuticas dilmófilas e heurísticas temerofóbicas (“temer o Temer”) sobre as conspirações que o imperialismo, aliado à Polícia Federal, maquina contra a Constituição de 88 (que em 1988 o PT quis repudiar). “É golpe!”, entoa o cordão que serpenteia no terreiro da luta de classes, entre meneios de cabeça e repuxões de ombros. “É golpe para derrubar Nhá Rousseff”.

Com olhos de farol baixo, Nhô Lula assiste à cena extasiado. Não tem pressa, mas também não tem muita paciência. Começa a se enfadar com tanta firula constitucionalista e decide que é hora de tomar novo fôlego. Empunha o microfone outra vez, olha para o outro cordão ao seu dispor, o cordão dos parlamentares, e solta sua voz mais gutural, simulando o tom meio cochichado de um conchavo: “É mentirááá!”.

Nhô Lula dá risada com o alvoroço que provoca. Enquanto os intelectuais amuam, lá se vão os deputados federais de gravatas caipiras tomar parte na barraca da Câmara, a mesma que teria desferido o golpe inominável, o “golpe parlamentar”. Enquanto golpe havia, ficavam na deles. Agora que golpe é mentira, ei-los solícitos aos ritos legislativos. Alegres em seus saracoteios, votam em Rodrigo Maia para presidente. Maia é do DEM e até ontem praticava o golpismo torpe, mas agora, depois que Lula liberou geral, está repaginado em Nhô Rodrigo.

O cordão intelectual não contava com tamanha desinibição do cordão parlamentar, que entre um voto e outro sai em busca de novas alianças municipais com o PMDB. Nhô Rodrigo é o novo companheiro contra o inimigo maior, embora morto, o coroné Cunha. Viva Nhô Rodrigo! Viva o quentão! E dá-lhe sanfona. Alguém pede Tim Maia. “Que beleza é a natureza.” Que beleza é a quermesse parlamentar.

Nhô Lula resmunga. A farra está indo longe demais. Esse pessoal não se manca? Então, sem se levantar da cadeira, emite nova voz de comando: “É verdade!”.

Vixe Maria. Jesus amado. Um intelectual e um parlamentar, abraçados, giram sem sair do lugar. Nhô Lula toma um fartão e entrega o microfone à Sinhá Kátia Abreu, que bota um baita de um olho gordo naquele curral.

Corta.

Antes de entrar na outra hipótese, convém recomendar que as crianças sejam retiradas da sala.

Não, o PT não é uma quadrilha. O PT é um partido político. Pode parecer absurdo fazer tal afirmação assim a seco, mas, calma, é só uma hipótese. Acontece que o PT não é um partido de tipo comum, como diriam os cientistas desse campo tão pouco científico, mas um partido de tipo especial. Os partidos comuns dizem uma coisa e fazem outra. Os especiais, mais raros, dizem uma coisa e depois fazem exatamente o contrário da coisa dita. Um exemplo? Dilma um dia antes das eleições de 2014 e Dilma um dia depois das eleições de 2014.

Se a hipótese for verdadeira, quer dizer, se o PT for mesmo um partido de tipo especial, estará explicado por que – depois de mobilizar os seguidores na sua cruzada contra o “golpe”, depois de tantos discursos, cartazes, xingamentos, passeatas patrocinadas por centrais sindicais patrocinadas pelo governo, depois de tantos colóquios acadêmico-apostólicos – mandou seus deputados despejarem votos num presumido golpista (até ontem) para presidir a Câmara dos Deputados, a Casa que lançou a pedra fundamental do ato que (até ontem) era chamado de golpe. O PT falou uma coisa e fez o oposto. Tudo se encaixa.

Nesse ponto, surge uma dúvida de método. Ou bem o PT diz o que não pensa, ou bem não pensa no que faz. Se a legenda diz o que não pensa, conta mentiras deliberadas. Se não pensa no que faz, é irresponsável. A dúvida é insolúvel, pois as duas assertivas certamente não são de todo falsas e, para piorar, podem ser ambas simultaneamente verdadeiras.

Tentemos elucidar a equação por outro caminho. O PT afirma que há um golpe em curso. Se acredita mesmo nisso, há de acreditar também que a ordem democrática está em via de sofrer uma ruptura traumática das mais devastadoras, comprometendo a própria ordem democrática. Logo, o papel do partido, fosse ele coerente, deveria ser o de apontar a farsa (que tenta passar-se por democracia formal) e seguir denunciando os tais golpistas para desmascará-los e restaurar o Estado de Direito. Mas o PT fez precisamente o contrário: dá sua voluntariosa sustentação à escolha do novo presidente da Câmara, a quem chamava de golpista, e ainda posa de guardião da democracia.

Conclui-se que, na prática, o PT age como se não houvesse golpe nenhum. Portanto, quando fala em golpe, só pode ser da boca para fora. Quanto a ser quadrilha (de festa junina) ou partido político (de tipo especial), isso ainda carece de novas e mais profundas investigações empíricas e teóricas.

*Eugenio Bucci é jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP); foi diretor da Radiobrás no primeiro Governo Lula.

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