terça-feira, 26 de julho de 2016

Teologia da Criação: outro olhar e novas relações

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Não existem explicações que dêem conta do porquê de nossa existência.
Não existe nada fora de Deus que o possa condicionar.
Não existe nada fora de Deus que o possa condicionar.

Por Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM*

Constatamos que as teologias da criação elaboradas nos séculos XIX e XX engoliram a isca que lhes foi lançada pela Modernidade. Razão pela qual, o Criador passou a ser concebido como o princípio, a origem de todas as coisas. Só que, à diferença dos relatos bíblicos, esse princípio passou a ser concebido não mais na sua íntima relação com o presente e com o futuro. Agora, a origem passou a ser entendida como fundamento. Fundamento esse que fornecia as melhores garantias para que o projeto do ser humano moderno, concebido como sujeito pensante, pudesse ser levado a termo de forma voluptuosa e desimpedida. Foi nesse contexto que se aplicou ao Criador a imagem do “relojoeiro”. Outras imagens do Criador muito difundidas no horizonte da cultura moderna se colocam nessa mesma linha: a imagem do Criador como “o grande Arquiteto” ou outra mais recente, difundida pelos adeptos do “Intelligent Design”, que o apresentam como o “intelligent Designer”. A primeira conseqüência dessas imagens é a de instrumentalizar o Criador, concebendo-o como o fundamento e a certeza do projeto ideado e realizado pelo sujeito moderno.

Fomos, na verdade, demasiadamente habituados a conceber Deus como o fundamento estático de todas as coisas, circunscrevendo-o exclusivamente no passado. Conseqüentemente, o passado passou a ser considerado como determinante do presente e do futuro. Nós modernos, particularmente, construímos grandes sistemas nos quais não apenas o presente resulta condicionado inelutavelmente pelo passado, mas também o futuro, que passou a ser concebido como algo programado e, portanto, absolutamente previsto. Deste modo, o futuro acabou destituído de toda e qualquer ulterioridade.

Outra dificuldade provocada por essas imagens é a de relegar o Criador a regiões periféricas da realidade, condenando-o a uma situação de indiferença e de alienação face ao mundo. São imagens que, no fundo, traem uma concepção do Criador como um intervencionista. Por se encontrar fora da realidade, em determinados momentos críticos, ele intervirá como alguém que se intromete e intervém na trama da vida da qual ele não participa ordinariamente. Um deus assim se coloca em uma situação de oposição diametral ao Deus encarnado que nos foi revelado por Jesus Cristo e que constitui, portanto, a raiz de nossa fé.

O grande limite dessas imagens modernas do Criador e da criação é concebê-los como realidades que se dão no assim chamado reino da necessidade. Elas resultam necessárias com o intento de fundamentar e sustentar o inteiro projeto do ser humano moderno. Tudo parece circunscrito a um script predeterminado ou preestabelecido. Por alguma razão, as coisas tinham que existir e tinham que existir do jeito que são. Nesse sentido, elas comprometem a concepção bíblica da Criação como um evento inusitado, expressão da pura gratuidade de um Criador generoso

Sob um novo olhar, Deus se revela como a fonte a partir da qual emergem todas as possibilidades e, ao mesmo tempo, como a origem de todo o tempo a partir da dinamicidade própria do futuro. Ao invés, portanto, de insistirmos em interpretar o Deus bíblico como a determinação de todo o real, talvez fosse o caso de concebê-lo como a “possibilização máxima do possível”. Um Deus paciente que respeita e acompanha o ritmo natural do inteiro cosmos e de cada criatura, o ritmo da humanidade e de cada pessoa humana. Sua paciência não é sintoma de indiferença ou de passividade. Ele é o primeiro a se engajar no processo lento, porém eficaz de transformação e, portanto, de plenificação de cada criatura e da inteira criação. E essa sua atitude é expressão de sua peculiar condescendência proveniente de sua solidariedade e gratuidade singulares.

Significativa nesse contexto a afirmação de Bonhôffer: “Deus é impotente e fraco no mundo, e exatamente assim, Ele está conosco e nos ajuda”. Como também a do filósofo Gianni Vattimo: “Só um Deus fraco pode nos salvar agora”. Assim sendo, uma autêntica teologia da criação só poderá ser tecida a partir da experiência de kénosis que constitui a experiência-fonte, originante e fomentadora, das interrelações intratrinitárias e das distintas relações que o Deus Trindade instaura para conosco ao longo da história da salvação e por entre os meandros sutis de nossa trama cósmica. A criação se nos afigura, em última instância, como uma autêntica experiência de kénosis (esvaziamento, despojamento) que se revela mediante um tríplice movimento: retração do Pai que, ao nos chamar à existência, cria-nos “do nada”; despojamento do Filho que nos salva, resgatando-nos, mediante seu gesto de extrema solidariedade, “do nada do pecado”; e, por último, escondimento do Espírito Santo que continua realizando com lento vagar sua obra de santificação mediante a plenificação das pessoas, da história e do cosmos inteiro a partir “do nada do mundo”.

Conceber a Criação à luz do Mistério da Trindade significa ademais resgatar o sentido da relação singular entre Criador e criaturas. O termo Criação remete à experiência do dom e da gratuidade divinas. Dizer criação pressupõe a consciência da relação primordial entre Criador e criatura. Neste sentido, criação difere substancialmente de termos como, por exemplo, natureza ou cosmos. Ao nos reconhecermos criaturas, exprimimos a consciência de que a vida se nos afigura como oferecida gratuitamente. Poderíamos existir de outro modo ou sequer existir. E, no entanto, existimos. Portanto, o nosso existir revela um querer, uma intencionalidade, primários. Fomos queridos por alguém, por um Criador, e, portanto, passamos a existir. Não são, a rigor, necessidades intrínsecas que justificam nossa existência como tal. O que de fato testemunhamos é que somos queridos por alguém que deseja que existamos. E este alguém nos quer assim como somos. Também aquelas circunstâncias que caracterizam nossa existência são queridas como tais pelo Criador e correspondem, em última instância, a uma intencionalidade e querer gratuitos dele.

Não existem, portanto, explicações que dêem conta do porquê de nossa existência. E aqui, precisamente, nosso Criador se revela como Absoluto, manifestando assim sua radical diferença face ao caráter intrinsecamente contingente de suas criaturas. O Criador não está vinculado a nada. Não existe nada fora de Deus que o possa condicionar. Ele é o Ab-solutus por excelência. E seu querer e agir são absolutamente gratuitos. O fio condutor, portanto, que atravessa a inteira realidade criada é constituído pela experiência da gratuidade em todas as suas expressões. Não existem, a rigor, leis ou relações necessárias que caracterizam a relação entre o Criador e suas criaturas. E, por esta razão, estão descartadas todas as tentativas de encontrar explicações lógicas e necessárias que dêem razões à existência nossa e das demais criaturas.

Permeia a complexidade de tudo quando existe a gratuidade amorosa do Criador que se revela mediante um querer gracioso, caracterizado pelo cuidado e pelo enternecimento para com cada criatura e para com a inteira realidade criada. Este querer divino instaura de maneira consistente as legítimas buscas de sentido. A preocupação maior e mais fundamental do ser humano passa a ser então auscultar as interpelações do Criador inscritas em sua mais recôndita interioridade, no seio das relações interpessoais, nos meandros sutis da história e nas fibras mais íntimas da inteira realidade criada.

Porque expressão do querer mais íntimo de um Pai que deseja criaturas para poder instaurar com elas relações de comunhão, a criação se revela como o palco da trama amorosa e, por isso mesmo, dramática do amor esponsal entre Deus e suas criaturas. Somos, enquanto criaturas, radicalmente diferentes do criador. Somos diferentes não para selar nossa irremissível separação; mas, ao contrário, para nos decidirmos livre e conscientemente pela relação, fomentando assim o encontro e tecendo teias de comunhão.

*Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia.

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