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A fé no criador ressurgiu justamente nos momentos mais críticos do povo bíblico.
O povo bíblico é particularmente sensível à vida experimentada como evento.
Por Sinivaldo S. Tavares, OFM*
A Bíblia testemunha uma variedade de narrativas da Criação. Essa pluralidade por si só nos remete à importância da fé na Criação no universo religioso judeu-cristão. Quanto mais intensa, de fato, uma experiência, tanto mais ela fomenta uma variedade incontida de expressões. Embora sejam visíveis as semelhanças com os mitos das origens dos povos vizinhos, saltam aos olhos peculiaridades dos relatos bíblicos da criação. Em contato com outras tradições, o povo eleito admira, seleciona e absorve elementos de seus mitos das origens. Tais elementos, contudo, são recompostos e ressignificados no horizonte de narrativas bem tecidas em torno às dimensões peculiares e, portanto, constitutivas da fé bíblica. Os mitos das origens constituem grosso modo cosmogonias e representações do caos primitivo caracterizado pela indistinção. Os relatos bíblicos deixam transparecer, de algum modo, essa passagem do caos primordial para uma situação de harmonia propiciadora da vida.
O povo bíblico é particularmente sensível à vida experimentada como evento. Daí sua preocupação com a história e o caráter inusitado de seus acontecimentos e processos. Os processos cósmicos não lhe passavam despercebidos, mas eram acolhidos e experimentados na sua íntima relação com a historicidade da vida. Nesse sentido, percebe-se nas narrativas bíblicas da criação uma estreita relação entre as experiências de libertação/salvação e criação. No transfundo de tais narrativas, encontra-se uma profissão de fé profundamente coerente: o mesmo Deus que se revela no presente como “presença libertadora” e que acompanha a caminhada de seu povo na direção de um futuro bom e reconciliador, é aquele que se revela na origem como criador de tudo quanto existe.
A fé no Deus criador ressurgiu justamente nos momentos mais críticos da história do povo bíblico. Momentos em que sua fé nas promessas divinas e sua esperança no futuro encontravam-se ameaçadas pela dureza e crueldade do presente. E a fé no Deus criador lhe servia de estímulo a recuperar a confiança na presença e interpelação desse mesmo Deus no seu presente, abrindo perspectivas na direção do futuro. É nesse preciso contexto que ecoam as palavras do Dêutero-Isaías: ”Não vos lembreis das coisas passadas, nem considereis as antigas. Eis que faço uma coisa nova! Já está despontando: porventura não o percebeis?” (Is 43,18-19a). Portanto, a fé bíblica no Deus Criador comporta uma tríplice dimensão de Criação: 1) a criação no princípio: “No princípio criou Deus o céu e a terra” (Gn 1,1); 2) a criação como evento que se revela no curso da história (cf. o texto do profeta Isaías, citado acima); 3) a criação como plenitude da obra divina: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5).
Não há, portanto, na tradição de fé do povo bíblico, nenhum ranço de separação, menos ainda de contraposição, entre os eventos da criação, da história da salvação e dos tempos derradeiros e definitivos. Eles distinguem a história da origem primordial do tempo e da plenitude de todo o tempo. Todavia não as separam nem as contrapõem. Na sua distinção, o tempo escandido na sua tríplice dimensão se encontra habitado pela presença do Deus bíblico que se revela como presença libertadora.
Essa específica experiência de fé testemunhada pelo povo bíblico encontra-se expressa em forma poética nos relatos bíblicos da criação. Consideraremos aqui, ainda que brevemente, a título de exemplo, três relatos bíblicos da Criação: Gn 2, 4b-25; Gn 1,1 - 2,4a e Pr 8, 22-31.
1. A vida como evento: pertença e cuidado (Gn 2,4b-25). Na narrativa de Gn 2,4b-25, afloram relações de pertença e de cuidado como constitutivas do ato criador de Deus. E tudo é dito metaforicamente. O relato inicia falando de uma dupla carência, responsável pelo caráter inóspito e desértico da terra: a falta de alguém que cuide/cultive a terra e a carência de chuvas que a tornem fértil. O ser humano “cultivador/cuidador” (adam) é modelado pelo Criador a partir da própria “terra cultivável” (adamah). É, de fato, essa experiência de íntima pertença que faz do ser humano o cuidador/cultivador da terra. Nesta narrativa, o Criador aparece como aquele artesão cuidadoso que plasma o ser humano do próprio barro da terra para que ele seja seu cultivador/cuidador. Porque feito do barro da terra, o ser humano é chamado a ser o cultivador da terra. Pertença e cuidado, portanto, constituem simultaneamente a marca indelével do ser humano criado por Deus.
2. A vida como diálogo: interpelação e resposta (Gn 1,1 – 2,4a). No relato de Gn 1,1 - 2,4a, o Criador cria mediante a eficácia de sua palavra. O surgimento da vida é metaforicamente apresentado como fruto da interpelação divina. Deus mesmo chama à vida suas criaturas, comunicando-lhes uma singular incumbência. A própria existência das criaturas é concebida como uma vocação. As criaturas todas são criadas no bojo de um diálogo existencial e salvífico. Deus as chama, cada uma por nome, e no próprio nome reside a incumbência primordial de cada criatura. Esta eficácia da Palavra divina que cria a totalidade da realidade será responsável também pela criação da história enquanto trama amorosa da relação pessoal do Deus bíblico com seu povo escolhido. Toda a ação criadora de Deus é destinada ao shabat, culminância da criação. Na celebração da criação se encontra seu sentido. Assim como tudo quanto existe brotou gratuitamente do desejo generoso do Criador, o louvor e a ação de graças constituem a melhor correspondência das criaturas à generosidade e amor de seu Criador.
3. A vida como jogo: a experiência de gratuidade (Pr 8, 22-31). A concepção da criação como gratuidade transparece de maneira mais clara ainda nos relatos sapienciais da Criação, dentre os quais destaca-se o texto de Pr 8, 22-31: O Senhor criou-me como início de sua ação, antes de suas obras mais remotas. Desde tempos imemoriais fui constituída, desde as origens, desde os primórdios da terra. Nasci quando não existiam os oceanos, quando não havia fontes de águas abundantes. Antes que fossem fixados os montes, antes das colinas fui dada à luz. Ele ainda não tinha feito a terra e os campos, nem os primeiros elementos do mundo. Quando colocava os céus, ali estava eu. Quanto traçava o horizonte sobre o Oceano, quando condensava as nuvens lá no alto e continha as fontes do Oceano, quando fixava ao mar seus limites – prescrições que as águas jamais ultrapassam – e lançava os fundamentos da terra, eu estava ao seu lado como criança; entusiasmando-me, dia após dia, brincando todo o tempo em sua presença, divertindo-me em seu orbe.
Nesse texto, a obra da criação é explicitamente associada à experiência do jogo. Trata-se de uma linguagem metafórica que salienta a dimensão lúdica da criação que se coaduna bem com a concepção da criação como experiência de gratuidade. A obra criadora de Deus é narrada numa proximidade muito grande com a narrativa da criação de Gn 1, 1 – 2,4a. Trata-se do gesto de delimitação e de distinção para que o caos se transforme em um espaço harmonioso e propício à vida. O diferencial desse relato em relação aos demais é a figura da sabedoria, metaforicamente, descrita como uma criança que, durante todo o tempo, brinca na presença do Criador, divertindo-se e entusiasmando-se dia após dia com o conjunto das criaturas.
Essa figura da sabedoria que como uma criança se diverte, brinca, e se entusiasma na presença do Deus criador oferece as condições para pensarmos a criação como uma experiência lúdica. E essa metáfora da Criação como um jogo talvez seja a mais adequada para reassumir toda a riqueza de detalhes da fé bíblica na criação como experiência de gratuidade porque, no fundo, fruto do desejo livre e gratuito de um Deus que é, ao mesmo tempo, criador e Pai.
Portanto, é o Criador quem cria, seja pela habilidade e genialidade de suas mãos seja pela força e eficácia de sua Palavra seja ainda pela própria inventividade e leveza. Nesses casos, o cuidado do Criador é explicitado como fonte e origem de tudo quanto existe. Em tais relatos, no transfundo de suas metáforas, transparece a presença simultânea de dois elementos constitutivos da fé bíblica: 1) a origem divina do mundo: 2) a autonomia do mundo e a liberdade de suas criaturas face ao Criador. Essa consciência se encontra na raiz da atitude tipicamente bíblica face à profissão de fé no Deus criador: a experiência da gratuidade da vida.
*É doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia.
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