sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Bíblia: Palavra de Deus em linguagem humana

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A Bíblia é, sim, literatura. Todavia, com peculiaridades que a distinguem das demais.
É preciso ter
É preciso ter "competência" para não se equivocar na leitura do texto sagrado e lhe deturpar o sentido.
Por Pe. Jaldemir Vitório SJ*
Uma visão distorcida da Bíblia atravessou séculos e permanece viva no entender de muitos cristãos, de todas as denominações. Por ser livro sagrado, está isenta de erros. Sendo Palavra de Deus, deve ser tomada ao pé da letra e tudo quanto contém corresponde à descrição exata dos fatos. Por meio dela, Deus fala diretamente a seus fiéis. Por isso, é sagrada! Nela, nada pode ser posto em questão, sob pena de se duvidar do próprio Deus, numa aberta contradição da fé. Seus defensores esforçaram-se para demonstrar a inerrância bíblica com obras do gênero “A Bíblia tinha razão”. Recorrendo aos dados da ciência, da história, da arqueologia e tantos outros se deram ao trabalho de fundamentar interpretações literalistas e historicistas do texto bíblico. Com pouco sucesso de convencimento das mentes críticas!

O advento dos chamados métodos histórico-críticos abriu espaço para uma abordagem mais realista da Bíblia, como produção literária, com a superação das leituras fundamentalistas ingênuas. Sem perder a condição de literatura sagrada, foi-se revelando a maneira como foi tecida com mãos humanas; as mesmas que tecem qualquer outra literatura.

Os estudos em torno do texto bíblico, que foi gestado ao longo de séculos, numa língua e numa linguagem desconhecidas da grande maioria dos leitores e das leitoras atuais, identificaram os inúmeros gêneros literários nele utilizados, as tradições teológicas subjacentes, os modos como os autores trabalharam ao escrevê-lo, bem como as estruturas literárias, narrativas e teológicas dos textos. Surgiram, então, abordagens da Bíblia sob as mais diversas perspectivas: sociológica, estrutural, linguística, literária, histórica, psicanalítica, de gênero, cultural e tantas outras. São leituras que se mútuo complementam, ferramentas que ajudam o leitor e a leitora de fé a penetrar sempre mais profundamente no texto sagrado e captar-lhe a mensagem, como Palavra de Deus.

De extrema importância foi a leitura da Bíblia com os instrumentos da hermenêutica. Os recursos utilizados na interpretação da “literatura profana” foram aplicados à “literatura religiosa”. Grande conquista foi a compreensão de o texto bíblico ter resultado de contínuas hermenêuticas – leituras interpretativas – do fato fundante da fé de Israel: o êxodo da escravidão egípcia, por intervenção de Javé, que viu a opressão do “meu povo”, ouviu o seu clamor e desceu para libertá-lo (cf. Ex 3,7-8). Nos momentos de crise, a liderança religiosa se voltou ao passado, para iluminar o presente e fazer brotar no coração do povo a certeza de que Deus o ampara e o protege como nos tempos duros no Egito, quando era grande o risco de desaparecer, pela cruel opressão do faraó. O êxodo é o grande pano de fundo de todos os textos da Bíblia e deve ser levado em conta, quando se trata de interpretá-la. Ele está na origem da literatura bíblica.

É preciso ter “competência” para não se equivocar na leitura do texto sagrado, a ponto de lhe deturpar o sentido, com graves consequências para a vivência da fé. Ser competente significa possuir o instrumental necessário para adentrar o mundo do texto e captar-lhe a mensagem da salvação, a Palavra de Deus, que se encontra por trás das palavras, revestida com língua e linguagem humanas, e toda carga ideológica, cultural e religiosa, presente em qualquer forma de literatura.

A competência para a leitura do texto bíblico permite fazer a importante distinção entre o “dito” e o “afirmado”. A Bíblia é literatura no tocante ao dito; quanto ao afirmado, é teologia, catequese e espiritualidade. A mensagem está contida no afirmado; o dito é apenas uma roupagem literária do que se quer transmitir. A hermenêutica impede que o leitor e a leitora caiam na armadilha de confundir uma coisa com outra e façam a Bíblia afirmar, à sua revelia, o que ela não diz. Um exemplo clássico diz respeito à proibição de comer carne de porco (cf. Lv 11,7-8). O leitor competente sabe que se consideravam impuros os suínos, com a proibição de comer-lhes a carne e tocar-lhes os cadáveres, pela preocupação com a saúde e o bem-estar do povo. São conhecidas, atualmente, quantas doenças podem ser transmitidas por esse alimento. Daí a proibição bíblica de consumi-lo, por ser nocivo à saúde. Entretanto, se a suinocultura é praticada com alto grau de segurança e controle das agências sanitárias, não há porque evocar a lei bíblica para não comer carne suína. A mensagem bíblica atualizada proibiria o consumo de alimentos gordurosos, salgados, contaminados com agrotóxicos, cheios de conservantes, corantes e tantos outros componentes químicos danosos para a saúde dos humanos. Com certeza, proibiria comer hambúrgueres, batatas fritas e outros petiscos de certas redes internacionais de lanchonetes! A proibição bíblica de ingerir carne de porco (dito) ensina a evitar todo e qualquer alimento danoso para a vida humana, dom precioso de Deus (afirmado). Esse modelo de hermenêutica deve ser aplicado na leitura do texto bíblico, tanto mais se consideramos a linguagem metafórico-simbólica, largamente utilizada.

A Bíblia é, sim, literatura. Todavia, com peculiaridades que a distinguem das demais literaturas e lhe garantem um caráter peculiar. Trata-se de literatura religiosa, na qual Deus está presente da primeira à última linha, mesmo quando não referido explicitamente. Seus leitores privilegiados são comunidades de fé, em busca de fidelidade a Deus, por uma sabedoria de vida, portadora de salvação. Foi elaborada a partir das tradições históricas de Israel (Primeiro Testamento) e das comunidades cristãs (Segundo Testamento), em vista da transmissão de uma mensagem, ficando em segundo plano a preocupação com a verdade histórica dos fatos referidos, por ser teologia e catequese narrativa e não livro de crônicas. Cada livro bíblico está em estreita relação com seu contexto de origem, pois a mensagem tem leitores e objetivos bem definidos. Posteriormente, a Bíblia se tornou meta-texto, podendo ser lida com proveito em qualquer tempo e espaço, por leitores e leitoras de fé. Por fim, a literatura bíblica propõe um modo de proceder, um ethos, uma sabedoria que decorre da fé no Deus libertador, Deus da vida, contrário a todo tipo de injustiça e degradação do ser humano, criado à “sua imagem e semelhança” (Gn 1,26-27). Isto faz da Bíblia uma literatura muito peculiar e lhe permite ser chamada Palavra de Deus. 

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*Jaldemir Vitório é jesuíta, mestre em Sagrada Escritura, pelo Pontifício Instituto Bíblico e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. É autor e organizador de vários livros, dos quais destacamos “A pedagogia na formação - Reflexões para formadores na Vida Religiosa” (Paulinas, 2008).

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