sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Da comunhão à adoração

domtotal.com
Uma palavra sobre culto à eucaristia fora da Missa.
A adoração é fruto da comunhão e não pode ser suplantada por um ato de prostração.
A adoração é fruto da comunhão e não pode ser suplantada por um ato de prostração.

Por Rodrigo Ladeira*
A Celebração Eucarística é o centro da vida cristã. Esse aspecto fontal da Missa está atestado na Sacrosanctum Concilium, um dos documentos mais importantes do Vaticano II (1962/1965). Nesse texto do Magistério redescobrimos a Igreja a partir da experiência de encontro com Aquele que faz a Igreja, Jesus Cristo, palavra e gesto (sacramento) que nos incorpora a Ele.

A recuperação dessa questão primordial para a vida da Igreja se deve ao fato de que nós cristãos fomos levados a pensar que a liturgia, linguagem de salvação, lugar teológico, revelação do Mistério da fé, não era assim compreendido. Dissociamos o simbolismo do realismo. Invertemos a lógica da experiência eucarística. Adoramos para comungar mais que comungamos como gesto de adoração. Com isso, desde o século IX-X, relegamos o encontro amoroso do Deus que vem ao nosso encontro à simples observação da “casinha” dourada de Jesus sacramentado. A adoração é fruto da comunhão e não pode ser suplantada por um ato de prostração.

Há bem pouquíssimo tempo íamos à Missa para cumprir um preceito religioso, por medo do fogo do inferno, para aliviar nossas culpas... Uma nebulosa se instalou e a celebração que devia nos aproximar do mistério, se tornou lugar de ditar uma pseudo-moral cristã. A missa servia para purificar nossa alma, para nos colocar no caminho “certo”. Nesse contexto vimos nascer, dentro do cristianismo, anárquico por vocação (cf. Mc 2,27), uma anacrônica reinvenção da religião feita quase que exclusivamente de coisas, tempos, pessoas e lugares sagrados (separados). O cristianismo é fundamentalmente a revelação do Deus em si que se faz para nós, descendo, e está em nós por meio do seu Espírito que nos habita; por isso ser cristão é um jeito de ser no mundo; é assumir para si um projeto de vida, de humanidade, de Reino, apresentado a nós pelo próprio Deus ao se encarnar (verdadeiro Deus e verdadeiro homem). Deslembrados disso, era de se esperar que voltássemos a um culto da eucaristia apenas como “res”, como coisa, produto. É, em todo caso, sempre mais fácil requerer o sagrado, o incognoscível, o separado, para inserir na experiência mais cara da vida do cristão algo que não pertence a ela.

Estamos dizendo isso relendo a história do culto eucarístico fora da missa. Esse culto começa a se oficializar na promulgação da Festa do Corpo de Cristo, instituída em 1246 pelo Papa Urbano IV e incrementada por Celemente V no contexto do Concílio de Vienne (1311-1312) e João XXII em 1317, quando ordena uma procissão, como temos ainda hoje. O que se verifica então é que no século XIV a nova solenidade passa a ser celebrada em quase toda a Igreja. A partir daí uma miríade de devoções ao Santíssimo Sacramento pululam. A hóstia passa a ser elevada nas missas porque agora, mais que tudo, deve-se vê-la (cf. Sínodo de Paris, 1208/1210). Em 1906 o Papa Pio X declara indulgências para os fiéis que olhassem para a hóstia durante a elevação. Surge uma miríade de ofícios do Santíssimo Sacramento (João de Mont-Cornillon, Tomás de Aquino). Encontramos a partir o séc. XIV pequenos ofícios para serem recitados às quintas-feiras inseridas no “Livro das Horas”. Além disso, vários ofícios de expiação ao Santíssimo Sacramento podem ser encontrados a partir dessa época. As exposições do Santíssimo aparecem nesse contexto e são uma espécie de prolongamento da elevação da eucaristia para satisfazer a vontade dos fiéis de contemplar a hóstia de maneira mais prolongada.

Como verificamos é no segundo milênio cristão que encontramos a pedra-de-toque do culto eucarístico (real) deslocado da celebração litúrgico-sacramental (simbólico). Essa disputa entre o real (inclua-se aqui o jurídico) e o simbólico tem seu auge com o assim chamado Movimento Litúrgico (1909, com o discurso de Dom L. Beauduin), que durou mais de um século, até desembocar no Vaticano II. Esse embate aparecia de modo eminente na relação entre liturgia e piedade individual. O Movimento Litúrgico, desde seu início, defendia a tese de que a liturgia não podia ser apenas o rosto cerimonial dos sacramentos (rubricismo), como queriam seus contestadores, mas lugar da Revelação, recolocando as práticas de piedade eucarística, extralitúrgicas, sob a égide da celebração litúrgica.

Adorar (no sentido grego de prostrar) a hóstia; fazer procissões com o santíssimo sacramento exposto num objeto que tem um nome singular, o ostensório; inflacionar as visitas ao sacrário relegando o altar; entre outras práticas que se coadunam mais com a religião que com a revelação, nos parecem ainda atitudes pré-cristãs. A verdadeira adoração se dá na medida em que me disponho, mais que achar a Deus, a ser por Ele encontrado. O Senhor tem mais interesse em nos amar/salvar que nós mesmos podemos imaginar. Ele é capaz de descer até nós assumindo em si nossa carne (cf. Fl 2).

Em 2004 a “Congregação para o Culto Divino e a disciplina dos sacramentos” nos ofereceu um valioso documento “sobre algumas coisas que se devem observar e evitar acerca da Santíssima Eucaristia”. Sem entrar nos pormenores, a ordem em que os temas são apresentados nos faz crer que os elementos muito bem chamados de extras, estão secundados à experiência que acontece em seu grau mais elevado na celebração da eucaristia. Se podemos “visitar” Jesus na hóstia consagrada, ou carregá-lo em procissões e outras práticas, só o podemos secundariamente. É bom lembrar que o sacrário, no primeiro milênio cristão, era uma caixinha modesta que ficava na sacristia (daí vem o nome sacrário) e que servia para guardar uma reserva do pão eucaristizado (às vezes até do vinho eucaristizado) que seria posteriormente levado por diáconos aos ausentes – enfermos, idosos, presos etc. Quando a gente faz a piedade beber da fonte que é a liturgia então prestamos verdadeiro culto a Deus. O matiz primordial é o encontro sacramental no qual somos tornados verdadeiros sacrários vivos, templos do Espírito, em outras palavras, no qual somos feitos Igreja, Corpo de Cristo. Passamos da admiração, do êxtase eucarístico para a verdadeira ad+oração (segundo o sentido latino: “junto da boca” daquele que ora em mim; beijo salutar, amoroso). O culto a Deus aparece então plenificado porque aqui se vê cumprida a promessa da salvação, que nos vem como um grande e maravilhoso abraço/beijo que só é real porque sacramental, simbólico. Não somos nós que achamos Deus, que o visitamos, é Ele quem nos encontra, que bate à nossa porta (cf. Ap 3,20). A piedade eucarística ganha na medida que nossa sede só se vê saciada na oração da Igreja, na liturgia, em que podemos, mais que olhar, comungar. E só olhamos bem porque incorporados a Ele. Nossas práticas devocionais, salutares, quando ancoradas e seguras em Cristo, tornam-se fonte reveladora da maravilhosa economia da salvação.

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*Rodrigo Ladeira é mestre em teologia litúrgica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Atualmente coordena as atividades de extensão e pós-graduação lato sensu dessa mesma instituição. Ensina em vários cursos de teologia para leigos em BH. Assessora a equipe de catequese da Arquidiocese de Vitória-ES no projeto de implantação da catequese com inspiração mistagógica.

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