domingo, 7 de agosto de 2016

Intriga no Vaticano

Papa Francisco
Organizador da agenda papal e assessor de Ratzinger, o arcebispo Gänswein abre fogo contra Francisco
por Claudio Bernabucci 
*De Roma

No Hemisfério Norte esta é temporada de férias, para quem pode. Estamos no período mais quente do verão, mas o papa Francisco continua trabalhando, em Roma e não só: de 27 a 31 de julho, por exemplo, esteve na Polônia, para participar da Jornada Mundial da Juventude.

Durante a estação, a única mudança nos hábitos de trabalho de Bergoglio é a suspensão das audiências pontifícias. De resto, tudo continua como sempre, quase a remarcar que, se em Roma é pleno verão, no Hemisfério Sul a outra metade da humanidade está trabalhando e não tira férias. 

Também deste ponto de vista Francisco introduziu uma inovação na tradição papal. Desde Urbano VIII, eleito em 1623, todos os papas tiravam várias semanas de férias em Castelgandolfo, nos Castelli Romani, os morros que se encontram a pouca distância de Roma no caminho de Nápoles.

Aquele papa (Maffeo, da família toscana dos Barberini) gostava tanto do ar fresco da região que resolveu reestruturar uma antiga construção medieval, erguida nada mais nada menos que em cima dos restos da vila do imperador Domiciano. A partir daí, por quatro séculos, aquela virou a residência de verão de todos os papas, até Francisco, que resolveu não tirar férias “tradicionais”.

Também um dos principais colaboradores de Bergoglio, o arcebispo alemão Georg Gänswein, prefeito da casa pontifícia (ou seja, aquele que organiza a agenda papal), parece bastante operoso neste período, a julgar pela entrevista, mais incandescente do que o verão romano, recém-concedida ao jornal alemão Schwäbische Zeitung.

Padre Giorgio, como é confidencialmente chamado dentro e fora dos muros vaticanos, é um prelado bastante famoso, não só pela estampa (entre as socialites europeias é chamado de George Clooney da Santa Sé) e pelo talento esportivo (ex-mestre de esqui e bom jogador de tênis), mas sobretudo pelo fato de ser também secretário particular de Bento XVI.

Em outros termos, Gänswein trabalha de manhã com Francisco, depois almoça com o papa emérito e dedica-se a ele a tarde inteira. Até agora, por consequência, padre Giorgio era considerado uma espécie de oficial de ligação entre o novo e o antigo papa, função delicadíssima e de absoluta confiança. 

Acontece que Gänswein, na entrevista ao jornal alemão, faz inesperadas críticas ao papa Francisco, seja do ponto de vista da doutrina, seja do pastoral. No primeiro caso, ele refere-se com evidência à Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia, sobre a família, já objeto de ásperas críticas dos conservadores católicos nos meses passados.

“Quando um papa quer mudar alguma coisa na doutrina”, ele afirma, “então deve dizê-lo claramente, para que seja vinculativa. Conceitos doutrinários importantes não podem ser alterados a partir de meias frases (...). Declarações que dão margem a diferentes interpretações são arriscadas”.


Georg Gaenswein
A revista Chi (quem) dedica uma reportagem ao George Clooney de batina, conforme as socialites romanas
Contundentes foram também suas avaliações sobre a personalidade de Bergoglio: “Aquilo em que ele acredita, ele o faz e leva até o fim, sem escrúpulos (...) O fato de que nos discursos, em relação aos seus antecessores, ele seja, de vez em quando, mais impreciso e até um pouco desrespeitoso, deve-se apenas aceitar (...) mesmo com o risco de que isso possa dar origem a mal-entendidos, às vezes também a interpretações aventurosas”.

De impacto semelhante são as considerações pastorais: “O que significa o ‘efeito Francisco’?”, ele se pergunta. “Minha impressão é de que o papa goza de grande simpatia, como homem, mais do que todos os outros líderes do mundo, mas, no que diz respeito à vida e à identidade da fé, essa simpatia não parece ter grande influência.” 

Os arquivos do porta-voz do papa estão repletos de declarações desse porte, feitas por adversários de todos os tipos durante todo o pontificado. Mas Francisco e seu entourage devem ter acusado o golpe neste caso, porque padre Georg era considerado absolutamente fiel, como fiduciário de Ratzinger. Não por acaso, uma semana após aquela entrevista, não se registra ainda nenhuma reação por parte dos mais próximos a Francisco.

Monsenhor Gänswein, na verdade, já tinha demonstrado querer abandonar o papel de mero servidor pontifício, quando, em 21 de maio deste ano, convidado ao lançamento de um livro, fez declarações retumbantes em relação à presença de dois papas na cúpula da Igreja.

Em sua opinião, Bento XVI não teria abandonado completamente o ministério, e sim o teria mudado inserindo-o numa “dimensão colegial e sinodal, quase um ministério em comum. (...) Não existem, portanto, dois papas, mas de fato um ministério expandido, com um membro ativo e um membro contemplativo. É por isso que Bento XVI não desistiu, nem do nome nem da batina branca”.

Poucas semanas após essas declarações, Francisco respondeu indiretamente, reafirmando a clara distinção entre o papa demissionário e o efetivo, até citando as declarações de Ratzinger. Mesmo assim, pelo visto, as manobras de padre Georg continuam, e não há dúvida de que, antes ou depois, suscitarão enérgica reação. 

É inevitável constatar, nesta altura, que o principal colaborador de Ratzinger, mantido por Francisco numa importante função próxima a ele, esteja desenvolvendo um jogo próprio, cujas finalidades e alianças são até agora obscuras. Mas é fato, ao mesmo tempo, que seu protagonismo se junta e dá voz aos numerosos católicos não habituados a pensar com a própria cabeça, órfãos de certezas dogmáticas e assustados com a imprevisibilidade deste papa. 

A Igreja que Francisco herdou, forjada por uma cultura eurocêntrica, continua sendo “atrasada de dois séculos”, como sustentava o falecido cardeal Martini. Trata-se de uma Igreja pouco atenta às sensibilidades dos novos povos e ainda despreparada para os desafios globais que o mundo contemporâneo impõe.

Serão inevitáveis, portanto, lacerantes tensões entre o clero conservador, nostálgico dos antigos poderes e sossegados privilégios, e o pastor que gosta de ter “o mesmo cheiro de suas ovelhas”, aquele que empurra fiéis e sacerdotes em novos caminhos, para redescobrir a mensagem original de Cristo. Um papa que, em vez de reafirmar o dogma da infalibilidade, vem repetindo: “Quem sou eu para julgar?”

*Reportagem publicada originalmente na edição 912 de CartaCapital, com o título "O monsenhor intrometido". Assine CartaCapital.

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