terça-feira, 9 de agosto de 2016

Morte e vida

domtotal.com
Não me peça para explicar que não consigo.
“A sociedade reage positivamente à morte?”.
“A sociedade reage positivamente à morte?”.

Por Lev Chaim*
A morte faz parte da vida: simples de dizer, mas difícil de aceitar. Uma vez, vi um magnífico desenho da face de um homem com um amigo pintor, Peter Bol. De cara, o desenho já me impressionou. Perguntei se ele era o autor. Ele disse que não, mas o seu pai, que também era pintor. Era um desenho do avô dele, em fase terminal de vida, feito pelo seu próprio pai. Nos traços simples daquele impressionante rosto do avô moribundo, já se notava a morte. Não me peça para explicar que não consigo.  

Pelo desenho, percebia-se claramente que o autor, apesar de estar com o pai à morte, conseguiu se concentrar e desenhar justamente o momento de transição entre a vida e o além. Peter disse que ele próprio não conseguiria fazer o mesmo devido ao seu temperamento emotivo. Lembrava-me de tudo isto quando me preparava para escrever sobre um novo filme que estreou na Holanda, “Crônica”, de Michel Franco, jovem diretor mexicano, com o ator Tim Roth.

Ali ela narra a epopeia daqueles que cuidam de pacientes terminais. Concentra-se principalmente na vida do enfermeiro David (Tim Roth), na sua lida com diferentes pacientes terminais, na sua serenidade, na sua emoção que muitas vezes transparece e o coloca muito próximo do moribundo. As vezes tão próximo, tão íntimo, que acaba por gerar ciúmes entre os membros da família do doente, como se eles estivessem com inveja de David, um ‘simples’ enfermeiro.  

Tão simples não se pode dizer, pois esses enfermeiros anônimos têm que enfrentar a morte a cada dia e reagir conforme as coisas andam. Para isto são treinados, o que fica bem claro no filme. David, o enfermeiro ali, parece dançar pelo hospital, de cama em cama, silencioso, com movimentos leves de um lutador chinês de Tai chi. Talvez seja este o último momento de carinho de um vivo para com um quase-morto, ocasião em que coisas lindas podem ser ditas, ouvidas ou silenciadas.

O diretor do filme, Michel Franco, fez uma longa pesquisa sobre o assunto antes de começar as filmagens. A sua pergunta principal ao iniciar este projeto era a seguinte: “A sociedade reage positivamente à morte?” A sua resposta foi picotada: “Depende de caso para caso, de pessoas para pessoas”.  A mensagem ali foi ‘simples’: não se deve banir a morte da vida! Melhor para o que fica e melhor para o que vai.  

Com tudo isto, lembrei-me de uma sexta-feira, em São Paulo, para onde havia voado da Holanda, de quando o médico, depois de examinar o pulmão de minha mãe, fez uma cara séria e disse: vamos começar o tratamento em alguns dias,  mas não sei se vai adiantar. Foi como se ele houvesse pronunciado a minha própria sentença de morte. Sentimentos de culpa, por estar na Holanda? Talvez, mas também de desespero por não poder mudar aquela história.   

Sai alguns instantes do hospital, fui ao telefone público de rua (aconteceu há alguns bons anos e celular ainda era uma coisa rara) e liguei a cobrar para o meu irmão em Franca. Contei-lhe tudo, mas de uma maneira suavizada. No final, ele disse: “Vai dar tudo certo, não vai?” Queria um pouco de consolo mas acabei sendo o consolador. Após, desligar o telefone, disse para mim mesmo: “Não, ela não vai morrer, não vai!”. Ao deixar o telefone e caminhar de volta para o hospital, lágrimas escorriam pelo meu rosto.  

Alguns dias depois, antes dela ter começado o tratamento, num sábado, ela faleceu ao meu lado, dando um último e forte suspiro, como se quisesse jogar tudo para fora. Percebi que ela morria e gritei a minha irmã. Ao ver aquele desenho do meu amigo que me impressionou tanto, todas essas lembranças voltaram-me novamente.   

E também foi por isto que este filme do diretor mexicano me tocou de forma particular: é verdadeiro e trata de todas essas dores de uma perda definitiva, mas principalmente daqueles que, por profissão, têm que cuidar desses pacientes terminais. Aconselho que o assistam. É lindo e triste, mas vale a pena. E caso não sejam fortes o suficiente, saiam, deixem a sala! Não faz mal; muitos na Holanda o fizeram. Pelo menos tentaram.

*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou mais de 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o Domtotal.

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