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A ética proposta por Deus tem quatro pilares: misericórdia, direito, justiça e fidelidade.
Dorothy Stang, como Jesus, foi fiel ao Deus dos pobres, aos pobres da terra e foi martirizada.
Por Antônio Ronaldo Vieira Nogueira*
Vivemos em tempos conturbados da política, tanto em nível nacional, quanto em nível local. Além disso, costumeiramente nos deparamos com situações de negação de direitos e dignidade humana. Como sempre, são os mais pobres, os vulneráveis de nossa sociedade, os que mais sofrem com a ambição e injustiça desmedida. Em tal contexto, a Igreja precisa ser uma voz em defesa dos pequenos para ser fiel ao projeto de Deus, que é vida e justiça para todos. Infelizmente, é bastante comum que algumas pessoas e grupos bradem que política e ética não são assuntos da Igreja; esta deveria “cuidar apenas do espiritual”, como se a espiritualidade fosse desligada da vida real das pessoas. Com isso, a religião fica cada vez mais relegada ao âmbito do estritamente particular, tornando-se alienada e alienadora, verdadeiro “ópio do povo”.
Ao olharmos, no entanto, para a Bíblia, percebemos que religião, ética e política estão estreitamente imbricadas. No Antigo Testamento, a experiência fundante da fé do povo de Israel está na ação libertadora de Deus e na Aliança com seu povo, o que exige uma ética pautada pelo direito e a justiça. No Novo Testamento, Jesus, o enviado e revelador de Deus, leva às últimas consequências essa Aliança, colocando-se ao lado dos pequenos e marginalizados e denunciando todas as formas de exploração dos pobres, o que é contrário ao projeto de Deus.
E sempre que há desrespeito a esse projeto, Deus suscita homens e mulheres que fazem uma profunda experiência com Ele e Dele e, através de uma leitura crítica da realidade, percebem o que nela corresponde ou não à vontade divina. Esses são os profetas, mensageiros de Deus que, na experiência de Israel e de Jesus de Nazaré, aparecem como consciência crítica da monarquia e dos poderosos, quando transgridem a ética que brota da Aliança entre Deus e o povo. Como enviados de Deus e mensageiros de sua vontade, os profetas tem uma dupla missão: eles anunciam o projeto de Deus e denunciam tudo o que não corresponde a esse projeto.
A primeira missão do profeta é anunciar a vontade divina. Trata-se de mostrar as maravilhas que Deus realizou e realiza em favor do seu povo. Por isso, o profeta é aquele que sempre volta às origens da relação amorosa entre Deus e seu povo, para mostrar como Ele foi misericordioso para com seu povo. E, com isso, ele apresenta também as bases da ética proposta por Deus, que têm quatro pilares: misericórdia, direito, justiça e fidelidade. A misericórdia (hebraico: hesed) diz respeito ao trato com o próximo em termos de amor, bondade, solidariedade. O direito (em hebraico: mishpat) indica as determinações de Deus a que todos os indivíduos estão submetidos e que não pode ser manipulado por pessoas ou grupos. A justiça (hebraico: tsedaqah) é a consonância do direito com a misericórdia, ou seja, relações humanas equilibradas, proteção e respeito à dignidade humana, o que na Bíblia aparece como proteção ao órfão, à viúva e ao estrangeiro (trilogia clássica para falar dos excluídos). Por fim, a fidelidade (hebraico: ‘emet) que aponta para a firmeza, constância e perseverança na adesão a Javé e suas exigências.
Essa ética é tão presente e tão forte em Israel que o próprio culto (relação com Deus) está subordinado à prática da justiça (relação com o próximo), pois o comportamento ético é expressão da fé autêntica. Por isso, o profeta Isaías faz sérias denúncias a um culto desvinculado da vida (cf. Is 1,10-20) e, falando em nome de Deus, diz taxativamente: “não suporto maldade com festa religiosa” (Is 1,13). Dessa maneira, uma sociedade justa é descrita pelo profeta Jeremias: “Assim disse Iahweh: Praticai o direito e a justiça; arrancai o explorado da mão do opressor; não oprimais estrangeiro, órfão ou viúva, não os violenteis e não derrameis sangue inocente neste lugar” (Jr 22,3).
E quando a sociedade se caracteriza como “injustiça que clama ao céu” (Conferência de Medellín, Documento Justiça, n.1), a missão do profeta é denunciar, insurgindo-se contra os que “vendem o justo por dinheiro, o sofredor por um par de sandálias. Esmagam a cabeça dos fracos no pó da terra e tornam a vida dos oprimidos impossível” (Am 2,6-7). O que acontecia no tempo de Amós, não mudou muito em nossos tempos e não precisamos de uma análise muito profunda para percebermos as estruturas injustas presentes em nossa sociedade: não é natural, por exemplo, que o homem seja superior à mulher, que haja profissões consideradas mais importantes que outras, que as pessoas sejam discriminadas pela cor da pele ou pela orientação sexual (inclusive em piadas); não é natural que os melhores equipamentos do Estado (asfalto, água encanada, saneamento, hospital, segurança etc.) estejam nos bairros de classe média alta, enquanto a periferia sofre a total precariedade de todos os meios. É essa realidade que o profeta denuncia como contrária ao projeto de Deus. E nessa denúncia, conclama à transformação dessas estruturas e ele mesmo toma parte nessa ação. Aqui está a pedra de toque de sua missão. As denúncias incomodam e quem incomoda é facilmente rechaçado pelos incomodados, especialmente quando estes são os que estão no poder e se beneficiam de um sistema injusto, tal como na nossa sociedade hodierna.
Por isso que o profetismo é uma missão difícil. Quem se propõe a ser fiel ao projeto de Deus não pode esperar aplausos e fácil adesão às suas palavras; pelo contrário, a profecia gera perseguição e morte como resposta. Quase todos os profetas do Antigo Testamento foram perseguidos e morreram de modo doloroso, por serem fiéis a Deus. Jesus foi perseguido, rechaçado e assassinado com uma pena imposta aos piores malfeitores. Assim também aconteceu com muitos profetas, ao longo da história: perseguição, calúnia, morte. Mais recentemente conhecemos o caso de profetas mártires como Oscar Romero e Dorothy Stang. Como Jesus, foram fiéis ao Deus dos pobres e aos pobres da terra e por causa de sua fidelidade e profetismo, foram martirizados.
Tal constatação, no entanto, não nos deve desanimar. Como nos primeiros séculos, o sangue dos mártires era sementeira de novos cristãos, assim também, o sangue dos profetas-mártires é sementeira de novas lutas e novas conquistas. Romero dizia que se fosse morto, ressuscitaria na vida do seu povo. E seu profetismo não foi em vão. Assim também, tantos outros profetas nos legam conquistas e vitórias que nos dão a esperança de que as coisas podem ser diferentes. É porque a esperança cristã não se dá quando as coisas parecem ter solução, mas justamente quando tudo parece perdido. É, portanto, uma esperança teimosa, contra toda esperança (cf. Rm 4,18), mas esperança viva que se dá nas pequenas conquistas e vitórias, “a última que morre” como costuma dizer nosso povo, mas que “se morrer ressuscita”, segundo as palavras do profeta Casaldáliga. Esperança é a palavra de ordem na vida do profeta e é o que o move a doar toda sua vida para que haja mais vida e vida digna, conforme o projeto de Deus.
Portanto, sejamos profetas do anúncio das maravilhas de Deus, sejamos profetas da denúncia da injustiça e transformação do mundo segundo a vontade de Deus. Sejamos, por fim, profetas da esperança que, em tudo e contra tudo, defendem e promovem vida digna para os injustiçados de nosso mundo!
Leia também:
Os profetas e a profecia: caminhos de denúncia e de esperança
O profeta como porta-voz da esperança
A profecia na Igreja latino-americana
*Mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) Belo Horizonte/MG e presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte-CE.
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