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Tudo isso faz parte de mim. Tudo é a existência em processo.
Também andamos por onde esses personagens andaram.
Por Alexis Parrot*
Passei a última semana no Rio de Janeiro, por motivos pessoais e de trabalho. Encantou-me descobrir como a nossa teledramaturgia gruda na memória. Um simples passeio, por exemplo, em Copacabana, ativa cenários que eram da televisão mas que passaram a ser nossos; vislumbramos tais lugares como da nossa vida - e esses misturam-se com aqueles em que nos reconhecemos.
Toda a Atlântica percorrida por Glorinha da Abolição (Malu Mader) e mesmo a ausência da casa do personagem de José Lewgoy - aquela que foi a última da Avenida, demolida em 2013 (até o buraco significa; talvez, principalmente, o buraco signifique), ambas em O Outro (1987);
A estação de metrô Cardeal Arcoverde - com suas paredes e pilares de pedra expostos -, onde o taxista Carlão (Eduardo Moscovis) acaba assassinado no último capítulo de Pecado Capital (a segunda versão, de 98);
O Bairro Peixoto, súmula de cidadezinha do interior encrustrada no bairro - para onde a Helena de Maitê Proença se muda ao chegar na cidade (Felicidade, 92);
O Forte, onde o Senhor de Montserrat (Carlos Vereza) aprisiona Rosália (Gloria Pires) em Direito de Amar (87);
As vizinhanças de Copacabana também surgem bem coloridas, puxadas de algum canto lá de dentro. Pode ser só um detalhezinho, mas a Urca de Jô Penteado (Christiane Torloni), de A Gata Comeu, ainda está lá e nos salta aos olhos. Ao contrário disso; do Leme de Babilônia não nos lembramos muito (afinal, quem se lembra de Babilônia?);
E o cinema também adentra nossas lembranças, vivo sempre: tantas esquinas, pedacinhos de ruas e avenidas de Copa fazendo parte de nossa memória visual, desde os filmes policiais e as comédias de costumes dos anos 70, até a Domingos Ferreira do Edifício Master, obra-prima de Eduardo Coutinho;
E a literatura: as (des)aventuras do Detetive Espinoza, de Garcia Roza (já transcritas para o cinema e uma série de televisão); peripatético, escrutinador de toda uma Copacabana - do idílico Bairro Peixoto até às tentações da Prado Junior; ou a Santa Clara (rua e Poltergeist) de Fausto Fawcett; ou a Rua Duvivier dos poemas de Ferreira Gullar.
Esse acúmulo diz muito de nós. Também andamos por onde esses personagens andaram. Não se tratam mais de locações; são uma cartografia à qual pertencemos, nossos lugares no mundo. E as memórias, tanto da ficção absorvida quanto do palpável, vão se encontrando e se completando.
Estrangeiro no Rio (sem ser), unem-se a esse meu cabedal de cenários, a partir de agora, indelevelmente, um apartamento na Nossa Senhora de Copacabana... certo hotel na Avenida Atlântica... a pedra do Leme... Tudo isso faz parte de mim. Tudo é a existência em processo. Tudo marca da pele e da memória: vida.
Uma memória: Lula e a TV Pública
Em outubro de 2015 estive em São Paulo para uma reunião no Instituto Lula, articulada pelo bravo Jordão Pacheco, diretor da não menos brava e necessária TV do Trabalhador, de São Bernardo do Campo. Naquela altura eu ainda era o Gerente de Produção e Programação da Rede Minas de Televisão, a TV pública de Minas Gerais, e estava ali a representando. Era um inicio de conversa, para expressar o interesse que havia nas duas emissoras para a troca de conteúdos com as TVs públicas dos países africanos - com os quais o Instituto já mantinha estreito contato. O Instituto poderia servir como ponte importante nesse processo, essa era a impressão que todos nós compartilhávamos.
No meio da reunião, para uma rodada de cumprimentos, surgiu o ex-presidente Lula (acompanhado pelo presidente do Instituto, Paulo Okamoto). Tomando conhecimento do teor da pauta discutida ali, sentaram-se conosco e, por um longo período de tempo, pudemos conversar sobre a TV pública brasileira.
Com alegria, pude ver o interesse de todos ali pelo campo da Comunicação Pública; as lembranças de Lula e a análise dele sobre a criação da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação) durante seu governo e suas preocupações concernentes ao tema.
Uma das coisas que me recordo com mais entusiasmo dessa conversa é o relato de como ele, Lula, criou o Conselho Curador da instituição: republicano e polifônico. A direita e a esquerda; o governo e a sociedade; as minorias étnicas e sexuais... todos deveriam estar representados. E estiveram, durante esses anos todos.
O mesmo Conselho Curador que o governo recém-empossado - porém golpista - pretende riscar do mapa. A diferença de abordagem sobre o assunto de um e outro mostra bem a quais interesses cada um serve. Mostra ainda o Brasil que já fomos e o Brasil em que nos tornaremos a partir de agora.
Alívio
Por ter participado de reunião no Instituto Lula, com horário marcado e tudo na agenda oficial de lá, tive algum receio de que meu nome acabasse também aparecendo no já antológico power point da vergonha do Ministério Público. Não que me dê essa importância toda, mas no teatro do absurdo que se tornou o Brasil tudo é passível de ser retorcido. Até o sentido das palavras: onde lia-se "provas", agora lemos "convicção"; onde lia-se "convicção" passa-se a ler "lambança".
*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.
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