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Uma crônica demolidora desenha-se na tela a partir de um conflito básico.
Cena do filma "Aquarius", ficção do cineasta Kleber Mendonça Filho.
Por Neusa Barbosa
Concorrente brasileiro à Palma de Ouro em Cannes em 2016, “Aquarius”, segundo longa de ficção do cineasta Kleber Mendonça Filho, explora com perícia as contradições da classe média brasileira, e também mecanismos atávicos de dominação e convivência social, a partir do microcosmo do Recife.
Conta, para isso, com uma extraordinária heroína, Clara, uma ex-crítica musical e escritora madura, interpretada com brio por Sonia Braga.
Uma crônica demolidora desenha-se na tela a partir de um conflito básico: o pequeno e antigo prédio onde Clara (Sonia Braga) mora há décadas, onde viveu parte fundamental de sua história, na praia da Boa Viagem, foi inteiramente comprado por uma construtora, que se prepara para demoli-lo.
O plano é substituí-lo por mais um daqueles imensos espigões que infestam toda a faixa à beira-mar da capital pernambucana, a ponto de impor suas enormes sombras na praia, a partir do começo da tarde.
Clara, no entanto, não vende seu apartamento. Resiste a todas as investidas: aumento da oferta monetária, tentativa de cooptação de seus filhos e, finalmente, a estratégia do incômodo, do assédio de violência crescente. No apartamento vazio acima do seu, fazem uma “festa”, com muito barulho, mulheres, bebida, impedindo a única moradora de dormir. Num outro dia, o prédio é invadido por evangélicos, que ali realizam um culto e ocupam as escadas e o estacionamento.
A ideia é pressionar Clara para sentir-se uma intrusa, ter medo e partir, satisfazendo a expectativa geral. Mas essa notável personagem feminina foi elaborada com tanta sofisticação, tantas nuances, que o filme, afinal, fala de muitas outras coisas além da batalha central.
Entre elas, inclusive, o papel das mulheres como Clara, ou uma parente, a tia Lúcia (Thaia Perez), na expansão das liberdades na vida e no mundo. São mulheres que não se conformam aos papéis socialmente estabelecidos, sexuais inclusive (o filme toca no sensível ponto da vida amorosa das mais maduras), que estão sempre empurrando fronteiras. Quem não gostar, que as enfrente.
Num filme tão rico em camadas, “Aquarius” pode ser lido também como uma crônica familiar e social do país. Quer se conheça ou não bem o Brasil, é possível enxergar as nuances das relações sociais entre patroas e empregadas (numa chave diferente da de “Que Horas Ela Volta?”, mas igualmente complexa); as enormes diferenças sociais e especialmente a arrogância e truculência de um certo tipo de elite, representada pelos donos da construtora.
Há uma conversa, em particular, entre Clara e o neto do dono da construtora, Diego (Humberto Carrão), em que isso é mostrado à perfeição, quando ele fala da “pele morena” dela e do quanto ele imagina que a família dela “deve ter batalhado para chegar onde chegou”. Um retrato dessa polarização que o Brasil enfrenta há muito, ainda sem solução à vista. Por isso, um filme como “Aquarius” é tão importante.
Clique aqui, confira o trailer e onde o filme está em cartaz na Agenda Cultural!
Reuters
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