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Como deixar de ser quente num território frio?
Eu poderia ver lá embaixo, além de Ushuaia, mas estou aqui entre dunas de areia.
Por Ricardo Soares*
Ele poderia viver lá embaixo, além de Ushuaia, longe das notícias ruins, perto dos pinguins, a procurar pés de romã entre as fendas da neve ou vestígios de vida intergalática entre as miúdas pedrinhas dos caminhos. Ele poderia viver lá embaixo, vizinho do frio, perto de alguma remota fogueira a contemplar o voo errante de alguns pássaros que migram mas, não, preferiu estar mais acima, do lado da linha do Equador, suando a camisa em embates quentes que buscavam, ao fim e ao cabo, a perspectiva de um país melhor.
Como deixar de ser quente num território frio? Como equilibrar os termostatos humanos, como temperar os caldos da vida? Toda vez que senti frio e esfreguei as mãos para simplesmente ficar sob as cobertas nada saiu do lugar. Mas quando esfreguei as mãos, olhei para a neve lá fora e nela me expus e a enfrentei dei comigo mesmo em uma situação mais quente.
Rios da história e rios de histórias passam por mim sob finas camadas de gelo ou sob a lava quente que desce e queima os pés. Todas as encruzilhadas e labirintos historicos podem aparentemente estar a apontar para o fim das utopias mas eu conjugo o verbo “crer”. Creio que o Sena continuará dando a Paris o seu charme, creio que o Tietê se prestará sempre a meditações soturnas, creio que a seca foi abolida do Volga e os maus presságios fugiram do Tamisa. Enfim tento me diluir em muitas águas. As mágoas ficam apenas como penduricalhos de rimas.
Eu poderia ver lá embaixo, além de Ushuaia, mas estou aqui entre dunas de areia e uma imensa ventania a engolir a estação das chuvas que se aproxima. O nível do meu medo transbordou mas eu o superei. Sei que tenh coração para abrir comportas. E acredito na eterna alegria daqueles que remam.
*Ricardo Soares, escritor, roteirista, jornalista e diretor de tv. Escreve às segundas e quintas para o DOM TOTAL.
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