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Curioso que os homens prefiram os céus, quando Deus prefere a Terra.
Por Sinivaldo S. Tavares*
Para que se vislumbre melhor a dimensão simbólico-sacramental da fé cristã, necessário se faz, em primeiro lugar, explicitar melhor e valorizar mais a comunicação na mediação da linguagem, da cultura, da corporeidade. Talvez seja o caso de a teologia se aproximar mais da poesia, pois, esta parece ser a instância que melhor colhe a vida na sua intrínseca paradoxalidade e, portanto, em sua mais íntima e íntegra profundidade.
O discurso teológico poderá, assim, ser reconduzido ao seu habitat natural, o simbólico-sacramental, a fim de que possam ser desentranhadas suas principais virtualidades. É propriamente neste horizonte epistemológico que a diferença entre Deus e ser humano, entre Deus e demais criaturas, será devidamente respeitada. Pois, na verdade, para que o símbolo se dê é imprescindível a co-presença de dois elementos distintos, onde cada um dos elementos simbolizados é reconhecido na recíproca relação com o outro. Isto pressuposto, Deus não pode ser alcançado diretamente; só pode ser expresso na singularidade da mediação simbólica do ser humano, mas também na mediação dos eventos históricos e da complexidade da inteira realidade criada.
Nesta perspectiva, o “teologal” se encontra, paradoxalmente falando, no “antropologal”; e o “mais espiritual”, sempre se dá no “mais corporal”. Assim, as clássicas dicotomias entre corpo/alma, sensível/inteligível, natural/sobrenatural, liberdade/graça, material/espiritual, transcendente/imanente e tantas outras que se incrustaram em nossos idiomas, gramáticas e representações várias devem ser desmascaradas e, quem sabe, até reconvertidas. Tal empresa só será possível mediante um consentimento positivo com respeito às mediações sacramentais. É o que transparece no texto de Rubem Alves, intitulado Corpus Christi:
“ [...] Por isso me alegrei com esta festa de nome Latino, Corpus Christi, em que a cristandade comemora, teimosa e inconsciente, o corpo de Cristo. Fosse a celebração da sua alma, confesso que fugiria. [...] Mas este dia, Corpus Christi, a se acreditar na tradição, diz que Deus, cansado de ser espírito, descobriu que o bom mesmo era ter corpo, e até se encarnou, segundo o testemunho do apóstolo. Preferiu nascer como corpo, a despeito de todos os riscos, inclusive o de morrer. Porque as alegrias compensavam. E nasceu, declarando que o corpo está eternamente destinado a uma dignidade divina. Curioso que os homens prefiram os céus, quando Deus prefere a Terra. [...] Corpus Christi: divino é o pão e toda a terra onde cresceu, com a água que o fez germinar, e o vento que o acariciou, e o fogo que o cozeu. Divino é o vinho, alegria pura que dá asas ao corpo e o faz flutuar. Coisas do corpo: dentro dele cabe o Universo. Não é à toa que a tradição fala não em imortalidade da alma, mas em ressurreição do corpo. Afirmação de que a vida é bela e o divino se encontra nas coisas materiais mais simples. Como dizia Blake: ‘Ver um mundo num grão de areia’. Ou Fernando Pessoa: ‘Toda matéria é espírito’. E assim, como e bebo as coisas deste mundo, corpo de Deus...”[1].
A corporeidade do ser humano, das criaturas todas e a materialidade do cosmos não são um empecilho, mas, ao contrário, constituem o cenário no qual somos chamados a acolher a gratuidade benevolente do Criador e a corresponder generosamente a seus desígnios. Somos interpelados, portanto, a recuperar a consciência da dimensão mistérica das criaturas mediante uma atenção especial à dimensão do admirável e maravilho que transparece na rotina e na obviedade das coisas. O caráter surpreendentemente inusitado e não programável do “vir a ser” das criaturas não é mero fruto do acaso nem simples efeito de uma “cadeia do ser”, no interior da qual necessidade e racionalidade se exigem. As coisas não são porque devem ser nem são o que devem ser. Elas são expressão do querer gratuito e benevolente do Criador.
Portanto, cumpre problematizar o que se julga evidente. Descerrando cenários imprevistos e sugestivos; propiciando a emergência do que a luz da aparente obviedade impede-nos perceber. Operando, em suma, uma desconstrução da realidade para descobrir nela o “nada”, como alternativa ao ser: trata-se da experiência da insustentável leveza do ser, vale dizer, de sua inconsistência e do seu ser sem fundamento. Pois, o que tem nutrido a auto-suficiência e a empáfia do ser humano moderno é justamente a fixação na idéia do fundamento, que camufla o nada de onde viemos e, assim, nos torna cegos à gratuidade que permeia a inteira realidade criada.
[1] R. Alves, “Corpus Christi”, em ID., Transparências da eternidade, Verus, Campinas 2002, 107-108.
* Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia.
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