terça-feira, 25 de outubro de 2016

O estrangeiro na novela brasileira

domtotal.com
Deixamos de ser estrangeiros quando nos interessamos e nos reconhecemos no outro.
É, no mínimo, constrangedor o que a Globo faz atualmente com a colônia japonesa no horário das 18h.
É, no mínimo, constrangedor o que a Globo faz atualmente com a colônia japonesa no horário das 18h.

Por Alexis Parrot*

O que seria do Brasil sem a contribuição dos imigrantes e das colônias de estrangeiros que fixaram-se aqui ao longo de sua história? Inimaginável seria uma São Paulo sem a Mooca, sem o Brás ou o Bixiga; ou sem o bairro da Liberdade... O Rio de Janeiro sem os comerciantes de origem árabe da Saara ou sem os italianos e seus descendentes (que todo ano realizam suas famosas festas de santos padroeiros das suas comuni natais), seria uma cidade menos colorida e bem diferente do que é hoje. Ou o Espírito Santo, sem italianos - onde se concentra uma das mais portentosas colônias oriundas daquele país. Ou o sul do país, sem alemães. (Dá para imaginar Santa Catarina sem a Oktober Fest, por exemplo?)

A tradição, maneiras e hábitos trazidos nas malas junto com os objetos pessoais desses apatriados integraram-se com o que havia de típico aqui. Acabaram tornando-se complementares ao que é nativo as várias culturas que aportaram por aqui. - E somos, afinal, resultado do diálogo (nem sempre pacífico, nem sempre cordato, historicamente) entre todas essas vozes e narrativas que se entrelaçam e convivem em solo pátrio, desde o descobrimento.

É, no mínimo, constrangedor o que a Globo faz atualmente com a colônia japonesa no horário das 18 horas, de segunda a sábado. A sofrível novela Sol Nascente, de Walther Negrão, está mais para crepúsculo que alvorada... A começar pela escalação de Luiz Mello para viver o patriarca de uma família de origem japonesa. (Mello é grande ator, mas tudo tem limite... Sobre o assunto, houve a polêmica de atores de ascendência japonesa questionando o casting duvidoso da emissora para o papel. Seria uma espécie de "renascimento" dos black faces do teatro de vaudeville norte americano?)

Sol Nascente é mesmo uma mancha no currículo da Globo que sempre bebeu dramaturgicamente dessa presença de estrangeiros, partícipes na construção do imaginário do Brasil como nação. A força das histórias daqueles que, fugitivos de uma dura realidade - não raro, de miséria e fome, em sua terra de origem - escolheram o Brasil como a esperança no horizonte; a promessa de oportunidades e de um futuro melhor.

Um dos autores que mais explorou o filão foi Benedito Ruy Barbosa (com uma predileção visível pelos italianos, porém, sem excluir outros povos). Terra Nostra, de 2000, talvez seja o apogeu dessa verdadeira elegia que o novelista presta ao imigrante italiano no país. Ao acompanhar os desencontros do amor de Matteo (Thiago Lacerda) e Giuliana (Ana Paula Arósio), conhecíamos também o modelo de trabalho em que os grandes donos de terra exploravam a mão-de-obra dos imigrantes italianos nas lavouras. Espécie de continuação de Terra Nostra, Esperança veio dois anos depois, com outro capítulo da saga: a formação da consciência política do proletariado (novamente com imigrantes italianos na linha de frente) em uma São Paulo que se industrializava na década de 30.

Antes disso, dele também, assistimos a Vida Nova - uma espécie de laboratório para Terra Nostra e Esperança - uma novela das seis deliciosa, porque muito menos grandiloquente. Foi o último trabalho de Lauro Corona, que vivia um português em busca de amor e dessa tal "vida nova" do título, no bairro do Bixiga, nos anos 40. No cortiço em que morava grande parte do elenco, misturavam-se italianos, o lusitano de Corona, espanhóis e judeus.

Raul Cortez deu vida a um grande personagem criado por Ruy Barbosa em O Rei do Gado, de 97: o italiano Geremias Berdinazzi, arquiinimigo do Bruno Mezenga de Antonio Fagundes. Montechios e Capuletos ficaram a ver navios; rivais mesmo eram esses Mezengas e Berdinazzis, em uma guerra particular que atravessou gerações das duas famílias (deflagrada no passado pela posse de um riacho na fronteira entre as terras dos dois clãs). O velho Geremias, rico e sozinho, era muito mais infeliz que os militantes sem terra que formavam outro núcleo de personagens da novela. Pensando no velho Berdinazzi, vem a pergunta: pode um estrangeiro ser mesmo feliz? Além da esperança, que é inerente a quem se vê nessa condição, a tristeza e a melancolia não seriam também qualidades incontornáveis de todo estrangeiro?

O tema também foi alvo de produções fora da Rede Globo. Em 1981 o mesmo Ruy Barbosa escreveu Os Imigrantes, na Band; e seria impossível deixar de fora de qualquer inventário mínimo que se possa fazer sobre o tema, a clássica Nino, o Italianinho, de Geraldo Vietri - levada ao ar pela Tupi em 1969. Foi o primeiro grande papel de Juca de Oliveira na televisão e o personagem que o tornou querido e reconhecido pelo telespectador brasileiro.

E há também o turco Nacib de Gabriela, de 75 - baseada no livro de Jorge Amado, escrita por Walter George Durst e dirigida por Walter Avancini. E ainda bem que há esse Nacib - de Amado, Durst e Avancini sim; mas principalmente de Armando Bógus. Poderíamos repetir para Bógus a frase lapidar que o próprio escritor baiano disse para Fulvio Stefanini a respeito do personagem que esse encarnou na novela: "O seu Tonico Bastos é melhor que o meu". O Nacib de Bógus é infinitamente melhor que o Nacib do livro de Jorge Amado.

A construção que o ator fez para o filho de imigrantes sírios, é uma das coisas mais assombrosas que um ator já fez na televisão brasileira. É paradigma na busca pela verossimilhança de um personagem de papel que se torna carne e osso - Bógus deixou de ser Bógus e se tornou outra coisa ali - e, mais que isso: com um respeito e ternura extremos para com essa figura do estrangeiro que aqui se enraizou.

A partir do encontro do turco com Gabriela, Jorge Amado teceu uma fábula sobre as articulações e tensões entre o velho e o novo, o antigo e o moderno... mas na televisão é o drama da humanidade que sobressai. O amor do mouro Nacib com a retirante Gabriela - estrangeira no seu próprio país (ecoando, de certa forma, o protagonista de Morte e Vida Severina, o poema de João Cabral de Melo Neto; outro tipo de estrangeiro, sem lugar para si mesmo dentro da própria vida), é a vitória da oportunidade sobre o lugar geográfico.

Deixamos de ser estrangeiros quando nos interessamos e nos reconhecemos no outro - por mais diferente de nós mesmos que possa ser esse outro; daí sempre a beleza do encontro, uma revelação. E fazemos esse movimento quando tocados: por uma causa, por um princípio, por um amor... Esse é o momento do fim da jornada: é o voltar para casa, afinal.

*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve às terças-feiras sobre televisão para o DOM TOTAL.

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