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"O oposto do vício não é a sobriedade, mas a conexão".
"Dependentes não podem ser tratados como marginais. O melhor que podemos fazer é ajudá-los".
Por Fernando Fabbrini*
Peço desculpas ao leitor pelo título um tanto rude que abre hoje esta coluna. Não se trata de uma ratoeira jornalística proposital, um truque sensacionalista para atrair sua atenção. Muito menos uma referência indireta a certos grupos de políticos que circulam pelo nosso triste noticiário – embora a denominação se encaixe perfeitamente a vários.
Comento, sim, uma experiência curiosa levada a cabo pelo Dr. Bruce Alexander, PhD; psicólogo e professor emérito da Universidade de Vancouver, no Canadá, autor de vários livros. Ele vem dedicando sua vida ao estudo dos mecanismos dos vícios e históricos de indivíduos dependentes especialmente de cocaína e heroína. O psicólogo é uma hoje das referências mundiais no assunto.
Com quase 80 anos, Dr. Bruce passou muito tempo acompanhando pacientes em clínicas de reabilitação nos EUA, Canadá e em outros países. Analisou, pesquisou, remexeu dados, conversou com dependentes. E com base nisso criou uma teoria muito interessante – polêmica, inquietante e digna de reflexão.
A morfina é um remédio proveniente do ópio e graças ao seu altíssimo poder analgésico é aplicada como medicação em pacientes com dores fortes. A heroína é um de seus derivados, porém com presença habitual nos ambientes marginais, digamos assim. A morfina utilizada nos hospitais é até mais pura (e mais potente) do que aquela vendida pelos traficantes, já que não contém os aditivos para aumento de volume - e maior lucro. Dr. Bruce constatou que pacientes que receberam morfina em hospitais durante 10, 20, 30 dias – por conta de fraturas graves, cirurgias complicadas ou pós-operatórios idem – não apresentaram dependência posterior da droga, com poucas exceções.
Até há pouco, grande parte dos estudos sobre dependência dessas drogas baseava-se na clássica experiência de laboratório com cobaias. Pegava-se um rato, confinando-o numa gaiola onde existiam duas “mamadeiras”: uma com água comum e outra com água misturada à droga. Com o tempo, o bichinho “se viciava” na segunda mamadeira e, se privado dela, enlouquecia. Era mais uma vítima.
Dr. Bruce coçou a cabeça, torceu o nariz e resolveu caminhar em outras direções. Percebeu, de cara, que o ratinho solitário naquela gaiola não tinha mais nada pra fazer a não ser beber das mamadeiras, ansiosamente. Isso foi muito importante para o passo seguinte e para o surpreendente sucesso de sua própria metodologia, batizada de Rat Park (Parque dos Ratos).
O que ele fez? Montou novas gaiolas com as mesmas mamadeiras das antigas. Só que introduziu elementos extras – brinquedos, túneis, rampas para escorregar, bolinhas – e, sobretudo, colocou não apenas um rato, mas uma porção deles, permitindo o saudável convívio machos & fêmeas. (Sim, namorar também podia). Tanta atividade lúdica dava sede, e aí os ratinhos bebiam das duas mamadeiras, sem demonstrarem maiores preferências. Resultado? Pelas avaliações posteriores, os casos de ratinhos viciados em drogas no ambiente Rat Park despencaram assustadoramente.
Em seguida, o psicólogo mergulhou no universo dos humanos - veteranos da guerra do Vietnã - onde o uso da morfina era quase banal, minorando as dores dos ferimentos de batalha. Lutando na selva hostil de um país estrangeiro os vícios eram tentadores, funcionavam como mecanismos de escape. Álcool, maconha, cocaína e heroína faziam parte do dia a dia das tropas. Muitos soldados retornaram aparentemente viciados. Entretanto – atenção! – abandonaram o hábito rapidamente, quando acolhidos pelas famílias, filhos, amigos, esposas, namoradas. Menos de 15% permaneceram presos à droga e necessitaram de tratamento especial.
Então, Dr. Bruce escreveu seu famoso mote: “O oposto do vício não é a sobriedade, mas a conexão”. Que conexão é esta? Fácil: conexão humana, com pessoas, amigos, parentes, colegas de trabalho - enfim, conexão com a comunidade em volta. Interagir; sentir-se aceito, útil e querido é o segredo – simples - dessa conexão terapêutica. A teoria de Bruce Alexander não é uma unanimidade no âmbito científico; há controvérsias, o assunto é mesmo complicado. No entanto, hoje ninguém ousa desprezar completamente esta linha de pensamento quando o assunto é dependência química. O psicólogo reforça: “dependentes não podem ser tratados como marginais. O melhor que podemos fazer por eles é ajudá-los, com carinho e respeito, na busca de novas conexões com o mundo.”
Finalmente, ele nos alerta para um dado preocupante: recente pesquisa realizada nos EUA apontou que nas últimas décadas as pessoas passaram a viver em casas cada vez mais cheias de coisas (eletrônicos, principalmente) enquanto reduzem dramaticamente o número de amigos (gente, principalmente). Serão novos ratos solitários numa linda gaiola high-tech?
*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.
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