terça-feira, 29 de novembro de 2016

3%: Quando o Netflix decepciona 100%

3%, essa primeira série brasileira do Netflix, é decepcionante em vários níveis.
A verdade é que dos 3% não me animo a assistir mais que os 12,5%.
A verdade é que dos 3% não me animo a assistir mais que os 12,5%. (Reprodução)
Por Alexis Parrot*

Foi com entusiasmo que recebemos a notícia: o Netflix produziria uma série brasileira. No momento em que as emissoras de TV aberta reformulam seus departamentos de dramaturgia, oferecendo contratos por obra para a maioria dos atores e reorganizando seus times de roteiristas (com várias demissões à vista), a iniciativa poderia significar a criação de uma nova frente de oportunidades para um mercado de trabalho um tanto estagnado.

Mas, ao entender que se trataria de uma tentativa de ficção científica, acendeu-se já uma luz amarela, pelo menos. Iniciar um novo projeto com um gênero em que nos falta know-how poderia ser um risco alto demais.

E o que deveria ser uma boa nova, infelizmente, terminou em decepção.

3%, essa primeira série brasileira do Netflix, é decepcionante em vários níveis. Até a experiência piloto, realizada pelos mesmos autores, quando ainda estudantes universitários há 5 anos atrás - lançada como websérie e disponível no youtube -, consegue ser melhor do que a produção que o canal pago de streaming oferece para seus assinantes, em oito episódios.

E explico o porquê: a opção de utilizar lá uma decupagem que privilegia planos fechados, mascara com certa eficiência possíveis furos na ambientação da produção. Infelizmente, uma lição jogada no lixo nessa nova versão da história.

Em linhas gerais, a trama nos apresenta um Brasil no futuro, pelo menos 104 anos à frente de nosso tempo. Uma vez por ano, aqueles que completam 20 anos têm a chance de participar de um processo de seleção que os encaminhará para a ilha de Maralto, um oásis prometido de fartura - em oposição ao inferno e à carestia onde todos vivem. Apenas 3% dos participantes sairão vitoriosos desse ENEM futurista.

Assisti ao primeiro episódio na companhia de um amigo, diretor de arte de mão cheia e cenógrafo experiente, para discutirmos esse aspecto da série. Situar o público em termos do tempo e espaço em que se passa uma história, comporta grande parte da verossimilhança de qualquer narrativa audiovisual, ainda mais quando se trata de uma obra de ficção científica.

Cruza preguiçosa de Jogos Vorazes com Black Mirror, 3% fica muito distante da inspiração confessa dos autores: 1984, de Orwell e Admirável Mundo Novo, de Huxley. O gostinho de dèja-vu é inevitável. Já vimos aquilo tudo apresentado ali várias vezes. E, não raro, de maneira mais convincente. O desejo dos autores de explorar a questão da meritocracia se perde no meio de referências mal executadas, tanto esteticamente quanto no conteúdo.

É justamente a direção de arte como um todo, o que desfere um golpe definitivo na credibilidade daquilo que assistimos. No mundo fora da tal ilha de Maralto, o que vemos é uma versão menos elaborada do que já havíamos visto em Ensaio sobre a Cegueira, o filme de Fernando Meirelles baseado em Saramago. Ruas do centro de São Paulo mal maquiadas fracassam na tentativa de nos fazer embarcar no enredo.

E que futuro é esse, onde personagens são torturados na central de ar condicionado do prédio onde a seleção é realizada, com todos os seus dutos de alumínio aparentes? Difícil também acreditar que ainda estaria em moda, num tempo teoricamente tão distante do nosso, o famigerado pau de arara. Mesmo Woody Allen, há 40 anos atrás, conseguiu construir uma imagem de futuro mais coerente em O Dorminhoco - e isso para uma comédia; não para algo que se leva tão a sério como essa porcentagem travestida de alegoria do Netflix.

Todos os funcionários do prédio em que a seleção é realizada têm uma marca de vacina, visível através de buracos providenciais nas mangas de seus figurinos de feltro. O que significa essa vacina ainda não nos é revelado nessa largada da série, mas se olharmos direito, podemos verificar que não se trata exatamente de uma marca, mas de um band-aid daqueles redondinhos. Há cem anos atrás não havia ainda o band-aid ou o ar condicionado... Acreditar que daqui a cem anos, no mínimo, eles possam continuar uma presença firme e forte em nossas vidas, mesmo com todos os possíveis avanços da ciência, já não é mais nem um anacronismo. É um absurdo mesmo.

Os diálogos fracos, esquemáticos e cheios de clichês desperdiçam a presença de atores experimentados e sabidamente talentosos, como João Miguel, Zezé Motta e Sergio Mamberti.

Porém, o constrangimento maior pesa sobre as costas de Celso Frateschi. Seu papel, de um líder revolucionário com tiques maniqueístas dignos de um chefe de célula da Al Quaeda, nos brinda ainda com a pior maquiagem já vista em toda a já não tão curta vida do video em streaming pela internet. A mancha que cobre toda a sua bochecha esquerda parece que está prestes a se desgrudar e cair a qualquer instante e lembra muito aquelas lamentáveis pinturas que animadores de festa infantil perpetram nas faces desavisadas de nossos infantes, entre o pula-pula, uma apresentação de mágica mambembe e o parabéns pra você.

Entre tantos defeitos, o que mais nos salta aos olhos é o figurino. Definitivamente, o feltro não combina com qualquer imagem que qualquer um de nós possa ter sobre o futuro. Aliada a essa escolha infeliz de material, está a caracterização inacreditável dos brasileiros que vivem fora da terra prometida. Roupas rasgadas sem critério, mas limpas - vestindo pessoas que viveriam sob rigoroso racionamento de água. (E quando há sujeira, é fake, com pinceladas de piche ou algo que o valha no rosto dos figurantes e elenco de apoio.)

Para o meu amigo diretor de arte, uma simples voltinha pela C&A, com um conceito claro na cabeça, resolveria muito mais a contento o figurino desses pobres figurantes que vivem do lado de fora de Maralto. E, ainda para ele, o figurinista da série deveria ser elegível à pena de morte, tamanho o estrago que seu trabalho causou à produção.

Chego, afinal, ao diretor geral da série, o uruguaio César Charlone. Me pergunto como o competente diretor do filme O Banheiro do Papa e diretor de fotografia do emblemático Cidade de Deus e de Ensaio sobre a Cegueira (pensando bem, talvez isso possa explicar algo!) foi cair nessa furada. O saldo final é de puro desperdício.

A verdade é que dos 3% não me animo a assistir mais que os 12,5% já assistidos dessa primeira temporada. Se o primeiro episódio já decepciona tanto, imagina o sofrimento que seria atravessar todos os 100% dessa tentativa de distopia mal enjambrada que o Netflix tenta nos fazer engolir.

*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve às terças-feiras sobre televisão para o DOM TOTAL.

EMGE
*O DomTotal é mantido pela Escola de Engenharia de Minas Gerais (EMGE). Engenharia Civil conceito máximo no MEC. Saiba mais!

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