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A ressurreição de Jesus é certeza da ressurreição dos justos de todos os tempos.
A esperança da vida eterna do fiel está na ressurreição de Cristo.
Por Jadelmir Vitório*
O tema da ressurreição não está nas origens da teologia de Israel. Foi surgindo, pouco a pouco, a partir da concepção de destino final de cada ser humano. Num primeiro momento, pensava-se que, ao morrer, todos, bons e maus, “desciam” ao sheol, que, em grego, se diz hades e, em latim, infernum. Situado nas profundezas da terra, aí as pessoas continuavam a fazer as mesmas coisas que faziam antes da morte, numa espécie de réplica da vida terrena. A diferença consistia em não mais poder louvar a Deus, naquele lugar sombrio. Daí a pergunta do salmista: “Na morte ninguém se lembra de ti; quem te louvaria no sheol?” (Sl 6,6). Ou, então, “realizas maravilhas pelos mortos? As sombras se levantam para te louvar? Falam do teu amor nas sepulturas e da tua fidelidade no lugar da perdição? Conhecem tuas maravilhas na treva, e tua justiça na terra do esquecimento?” (Sl 88[87],11-13). O rei Ezequias, na iminência de morrer, lamenta-se: “Para o resto dos meus anos ficarei postado às portas do sheol. Eu disse: Não tornarei a ver Deus na terra dos viventes. [...] Com efeito, não é o sheol que te louva, nem a morte que te glorifica, pois já não esperam em tua fidelidade aqueles que descem à cova!” (Is 38,10-11.18).
Toda a esperança dos fiéis estava colocada na vida terrena. Esse era tempo de louvar a Deus e gozar das bênçãos divinas, expressas em forma de vida longa, prole numerosa e abundância de bens. A retribuição dos justos acontecia ao longo de sua existência. Para além da morte, justos e injustos estão em pé de igualdade. Portanto, a esperança de bênçãos limitava-se ao tempo aquém da morte; depois, estava reservada sorte idêntica para todas as pessoas, independentemente, de sua relação com Deus e com os semelhantes.
O livro da Sabedoria, escrito em grego, na metade do século I a.C., passagem do Antigo ao Novo Testamento, introduziu um elemento novo na reflexão. Seu autor percebeu haver algo de errado no ensinamento sobre o destino final igualitário de justos e injustos; não aceitava que o hades fosse o fim de tudo (Sb 1,14), pois “Deus criou o ser humano para a incorruptibilidade e o fez imagem de sua própria natureza” (Sb 2,23). Portanto, a esperança do justo está cheia de “imortalidade” (Sb 3,4); ele espera “alcançar a imortalidade” (Sb 8,13). Nessa mesma direção, o salmista pode dizer: “Meu coração se alegra, minhas entranhas exultam e minha carne repousa em segurança; pois não abandonarás minha vida no sheol, nem deixarás que teu fiel veja a cova” (Sl 16[15],9-10). Ou, então, “Deus resgatará a minha vida das garras do sheol, e me tomará” (Sl 49[48],16); “Quanto a mim, estou sempre contigo, tu me agarraste pela mão direita; tu me conduzes com teu conselho e com a tua glória me atrairás” (73[72],23-24).
A separação entre bons e maus se dará por ocasião do juízo divino. O autor usa a palavra episkopé, que, traduzida literalmente, significa supervisão, para falar do encontro de Deus com cada ser humano, no momento da morte. Deus “supervisiona” a vida de cada um (Sb 3,7.13.18), “examina-a” (Sb 4,6) por ocasião da morte, dando ao justo a devida recompensa, pois “os que são fiéis permanecerão junto a ele no amor, pois graça e misericórdia são para seus santos, e sua visita (episkopé) para seus eleitos” (Sb 3,9). O sheol está reservado, apenas, para os ímpios, “que serão castigados segundo os seus raciocínios: desprezaram o justo e se afastaram do Senhor. Infelizes os que desprezam a sabedoria e a disciplina” (Sb 3,10-12). Tarde demais, os ímpios se darão conta da insensatez de sua vida terrena e se perguntarão: “Que proveito nos trouxe o orgulho? De que nos serviram riqueza e arrogância?” (Sb 5,8). Dai a reflexão do autor: “Sim, a esperança do ímpio é como a palha levada pelo vento, como a espuma miúda que a tempestade espalha; é dispersa como o fumo pelo vento, fugaz como a lembrança do hóspede de um dia” (Sb 5,14). Enquanto “os justos vivem para sempre, recebem do Senhor sua recompensa e o Altíssimo cuida deles, [...] um sopro poderoso se levantará contra os ímpios e os dispersará qual furacão” (Sb 5,15.23).
Incorruptibilidade (aphtharsía – Sb 2,23; 6,18.19) e imortalidade (athanasía – Sb 3,4; 4,1; 8,13.17; 15,3) são dons divinos para os justos no final da vida terrena. Esses dois vocábulos nada têm a ver com a visão platônica da imortalidade das almas. No platonismo, a imortalidade era atributo da alma. No livro da Sabedoria, é graça recebida pelos justos, por uma vida de fidelidade a Deus. Por isso, contrariando a doutrina da retribuição, proclamará “feliz a mulher estéril, mas incontaminada, obterá seu fruto na visita (episkopé) das almas” (Sb 3,13) e “feliz, também, o eunuco que não praticou o mal com as mãos nem alimentou pensamentos perversos contra o Senhor; por sua fidelidade receberá graça especial” (Sb 3,14). Ou, então, “é melhor possuir a virtude, mesmo sem filhos; a imortalidade se perpetua na sua memória: Deus e os homens a conhecem” (Sb 4,1). A morte prematura do justo, na flor da idade, não deve ser vista como castigo de Deus, pois, em pouco tempo de vida, alcançou a perfeição (Sb 4,7-19).
Convicção semelhante encontra-se no segundo livro dos Macabeus. Estando para ser martirizado, um dos sete irmãos declara: “Tu, malvado, nos tiras desta vida presente. Mas o Rei do mundo nos fará ressuscitar para uma vida eterna, a nós que morremos por suas leis!” (2Mc 7,9). E outro: “Do céu recebi estes membros, e é por causa de suas leis [de Deus] que os desprezo, pois espero dele recebê-los novamente” (2Mc 7,11). Por fim, a mãe, também martirizada, fala a respeito dos filhos assassinados: “O Criador do mundo, que formou o ser humano em seu nascimento e deu origem a todas as coisas, é quem vos retribuirá, na sua misericórdia, o espírito e a vida, uma vez que agora fazeis pouco caso de vós mesmo, por amor às suas leis” (2Mc 7,22).
No evangelho de Lucas, a parábola do rico e do Lázaro é construída sobre o mesmo esquema (Lc 16,19-31). Após a morte, o rico vai para o lugar de tormentos e o pobre, ao morrer, “os anjos o levaram para junto de Abraão”. Entre os espaços existe um abismo grande e intransponível, de modo a impedir a passagem de um lugar para o outro. Na nova fase da vida, a riqueza possuída na vida terrena era desprovida de serventia para o rico insensível ao sofrimento de Lázaro.
A morte e a ressurreição de Jesus devem ser lidas à luz dessa teologia, tecida ao longo de séculos. Quando seus adversários o condenaram à morte, escolheram a dedo a maneira de fazê-lo. Crucificado, Jesus encarnava a maldição divina em seu grau mais elevado. Morreu pobre, jovem e sem deixar prole, em outras palavras, inteiramente, desprovido dos sinais da bênção. A morte de cruz, por sua vez, não dava margem para dúvida, pois evocava a declaração de Dt 21,22: “O que for suspenso é um maldito de Deus”. O apóstolo Paulo recorda esse fato: “Cristo nos resgatou da maldição da Lei, tornando-se maldição por nós, porque está escrito: Maldito todo aquele que é suspenso ao madeiro” (Gl 3,13). O credo cristão confessa que Jesus “desceu à mansão dos mortos”, ou, “desceu aos infernos”, para significar que experimentou a maldição até as últimas consequências, antes de ser ressuscitado pelo Pai, que o tem na conta de Filho obediente e fiel.
A fé na ressurreição de Jesus nasce no momento em que os discípulos são capazes de interpretar a cruz na contramão dos inimigos do Mestre. E compreendem que “Deus o ressuscitou, libertando-o das angústias do Hades, pois não era possível que ele fosse retido em seu poder” (At 2,24). Deus não só o retirou do Hades, mas “o exaltou” e “o constituiu Senhor e Cristo” (At 2,33.36). Em consonância com a tradição, o Jesus que foi para o Hades com sua corporeidade, igualmente, foi exaltado com sua corporeidade. A antropologia bíblica desconhece alma separada do corpo; só existe alma corporificada e corpo animado. Paulo tem uma metáfora interessante, tirada do ambiente agrícola, para ilustrar a passagem da vida terrena para a eternidade. “Semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1Cor 15,42).
Portanto, a esperança cristã na ressurreição tem duplo fundamento. (a) Apesar de Jesus de Nazaré ter sofrido a morte dos malditos, foi ressuscitado pelo Pai, pois, sua vida se pautou inteiramente pelo querer divino (Jo 4,34; 10,30) e sua crucifixão foi obra dos inimigos de Deus, fechados para a salvação que lhes era oferecida. Portanto, pendente da cruz, está o Filho bendito (Mt 3,17; 17,5), que o Pai não permite permanecer no hades (Ef 3,9-10). (b) Vale a pena ser discípulo de Jesus e viver como ele viveu, mesmo na eventualidade de ter morte semelhante à sua, pela certeza de ser acolhido pelo Pai, para a comunhão eterna com ele. A ressurreição de Jesus é certeza da ressurreição dos justos de todos os tempos. Tal esperança está na origem da fé cristã e, por ela, os mártires deram a vida, absolutamente, seguros de não serem decepcionados (Rm 5,5).
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*Jaldemir Vitório é jesuíta, mestre em Sagrada Escritura, pelo Pontifício Instituto Bíblico e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. É autor e organizador de vários livros, dos quais destacamos A pedagogia na formação - Reflexões para formadores na Vida Religiosa (Paulinas, 2008).
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