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A passividade nos torna cúmplices da injustiça e da morte dos mais pobres.
As 'Ocupações' são um contraponto à inércia que tomou conta da sociedade brasileira.
Por Élio Gasda*
Papa Francisco pronunciou um dos discursos mais incisivos de todo seu pontificado no III Encontro Mundial dos Movimentos Populares (Vaticano, 02 a 05/11). O evento reuniu mais de 170 delegados de 65 países, representantes de movimentos sociais, da economia popular, do campo e outros setores periféricos da sociedade. Destacam-se três passagens: denúncia, reação e convocação. Mobilizar é lutar contra essa inércia enorme
A denúncia: Esse sistema é terrorista. “Quem governa então? O dinheiro. Como governa? Com o chicote do medo, da desigualdade, da violência econômica, social, cultural e militar que gera sempre mais violência em uma espiral descendente que parece não acabar nunca. Há um terrorismo de base que emana do controle global do dinheiro sobre a terra e ameaça toda a humanidade. Esse sistema tiraniza e aterroriza a humanidade”. O medo paralisa as pessoas e as torna cruéis.
A reação. Inspirar-se na coragem da juventude. “Quanta esperança tenho nos jovens!” Sem o protagonismo dos jovens não haverá futuro para a sociedade. Esta convicção está confirmada no Prefácio do Docat (publicação que traduz a Doutrina Social da Igreja para os jovens): “Espero que um milhão de jovens, mais ainda, que uma geração inteira, seja, para os seus contemporâneos, uma Doutrina Social da Igreja em movimento. Porque o cristão que não seja revolucionário neste tempo não é cristão”. O movimento legítimo e corajoso dos estudantes em todo Brasil que se rebela contra o autoritarismo, os cortes de direitos sociais, os investimentos em educação e a reforma do ensino médio pode sentir-se apoiado por estas palavras. As Ocupações, urbanas, rurais e estudantis, são um contraponto à inércia que tomou conta da sociedade brasileira.
A coragem dos movimentos sociais: “os movimentos populares, são semeadores desta mudança, promotores de um processo em que convergem milhares de pequenas e grandes ações criativamente concatenadas, como em uma poesia; por isso quis chamá-los poetas sociais”. Diante das “forças poderosas que podem neutralizar este processo de amadurecimento de uma mudança que seja capaz de deslocar o primado do dinheiro e colocar novamente no centro o ser humano”, em Evangelii Gaudium Papa Francisco oferece um instrumento para sustentar os movimentos sociais. São quatro princípios derivados da Doutrina social da Igreja:
Primeiro princípio: o tempo é superior ao espaço. “Este princípio permite trabalhar em longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo” (EG, n.223). Projetos de longo prazo exigem poder de resistência diante das dificuldades. É importante privilegiar os processos novos que irrompem, como é o caso das Ocupações estudantis, pois desencadeiam novas dinâmicas, envolver novos sujeitos que assumem os processos de mudança. Segundo princípio: a unidade prevalece sobre o conflito. “O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser acolhido. Mas, se ficamos encurralados nele, perdemos a perspectiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada”. (EG, n. 226). Conflitos são inevitáveis. Mas a causa é maior do que os conflitos. Administrar as diferenças sem perder o foco naquilo que realmente importa.
Terceiro princípio: a realidade é mais importante que a ideia. “Existe uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente é a ideia, elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma” (231). Tomando em conta a pluralidade de correntes ideológicas e estratégias de luta presente no interior dos movimentos sociais, é um princípio voltado especialmente aos teóricos, assessores e lideranças. Quarto princípio: O todo é superior à parte. “Entre a globalização e a localização se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra” (234). Portanto, “não se deve viver demasiado obcecado por questões limitadas e particulares. Trabalha-se no que está próximo, mas com uma perspectiva mais ampla” (235). Todas as lutas locais contém uma dimensão sistêmica.
Convocados pela coragem de Jesus. A passividade nos torna cúmplices da injustiça e da morte dos mais pobres. As palavras de Francisco são dirigidas a todos: “Vocês, organizações dos excluídos e tantas organizações de outros setores da sociedade, são chamados a revitalizar, a refundar as democracias que estão passando por uma verdadeira crise”. É preciso coragem. “Por isso, rezemos por todos aqueles que têm medo. A misericórdia não é fácil... exige coragem. Jesus diz: Não tenham medo” (Mt 14, 27). “Viver é arriscoso, mas o que a gente quer da vida é coragem” (Guimarães Rosa).
*Élio Gasda: Doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
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