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Até que ponto delegar tudo à razão é a garantia de se alcançar a Verdade, o sentido?
A experiência mistérica não carece de entendimentos puramente racionais, ela nos faz transcender.
Por Felipe Magalhães Francisco*
Como é possível ser mistagogo, conduzindo as pessoas para um Mistério que ainda não nos tocou? Essa pergunta brota, em nossa reflexão, após a leitura de “São Manuel Bueno, Mártir”, de Unamuno. Contudo, outras perguntas também surgem em nosso horizonte, ao pensar sobre o papel da experiência, após o cogito ergo sum cartesiano. Experienciar o quê, se tudo nos deve passar pelo crivo da razão?
O Santo, do qual trata o romance, é um grande obreiro que, em sua vida, sofre o dilema de não acreditar em muitas coisas das quais prega. É um obreiro sem fé, aparentemente. Nosso Santo, ainda, bem sabia e defendia que precisava “iludir” o povo da pequena aldeia, a fim de dar-lhe um refrigério salvífico de que tanto carecia. Seria, tudo isto, honesto? Sofria por crer que sim e, quiçá, por querer crer que tudo o que fazia, era força de um Mistério que o excedia.
Retomando o axioma cartesiano, recordamos a máxima medieval: crer para compreender, compreender para crer. Esse axioma nos reporta à ditadura da razão sobre todo crer. Reconhecemos, contudo, o papel fundamental da razão na vida humana, mas até que ponto, delegar tudo à razão é a garantia de se alcançar a Verdade, o sentido? Eis uma grande tentação moderna!
Nossas liturgias estão abarrotadas de pessoas que querem abarcar o Mistério racionalmente. Por outro lado, também estão sobrecarregadas de pessoas para as quais basta uma emoção, uma sensação corpórea, para que se sintam tomadas por inteiros do poder amoroso de Deus, mas carentes de sentido. Nosso Santo, porém, não se encaixa nessa última leva de pessoas e, supomos, aproxima-se mais da primeira. Mas, seria só isso? Pensamos que não.
Acreditamos ser nosso Mistagogo uma pessoa dotada de experiência religiosa. Num primeiro momento, esta é puramente psicológica: o Mistério nos encanta. Porém, quando sadia, ela vai além: ela busca alcançar o sentido. Eis uma atividade espiritual! Aqui, voltamos à pergunta inicial, sobre como conduzir ao Mistério, um Mistério que ainda não experimentamos. Somente movidos por um impulso espiritual somos capazes de agir, com frutos. A imagem do nosso Santo ministrando a comunhão, pela primeira vez, àquele que fora feito discípulo, muito impressiona-nos.
Sua vida toda inteira, que incluía toda sua fragilidade de incompreensão, foi motivo de conversão daquele que, assim como nosso Santo, julgava-se incrédulo e, por isso, havia sido cativado. Uma experiência mistérica não carece de entendimentos puramente racionais: ela é mais, faz-nos transcender. Coloca-nos diante do sentido que nos move. Talvez tudo isso nos falte, em nossas liturgias e em nossas práticas pastorais e de oração: lançarmo-nos por inteiros no Mistério, a fim de que ele nos dê significado, e nos impulsione à vida, à plenitude do existir.
Experimentar para crer, talvez também seja uma formulação necessária, a fim de que percebamos o valor da inteireza do nosso ser, em nossa relação com o Transcendente. Aqui, impossível não recordar o filósofo Xavier Zubiri, com a “inteligência senciente”, que nos parece ser um bom caminho, sem o extremo da razão, nem o da pura sensação, sobre nosso lugar no mundo, como apreendedores da realidade. E o nosso Santo, muito tem para nos ensinar, quanto a tudo isto!
* Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). Escreve às segundas-feiras. E-mail para contato: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.
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