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Uma nova imagem de Deus está para ser encontrada. Ela surge neste mundo secular e plural, e não fora dele.
Não existe nada de profano para aquele que sabe ver.
Quase todas as noites, prestes a dormir, ouço minha esposa dizer: “vou retomar o dia, Pedro”. E como num ritual, ela pega seu “livro de vida” – um caderninho onde ela faz suas anotações de revisão de oração – joga uma almofada no chão, sobre o tapete, e senta em posição de lótus. Fica alí por 5 minutos, no máximo. Depois faz algumas anotações e vai para cama onde eu estou à sua espera. Pronto! Está feito o seu exame de consciência. E o que seria exatamente isso?
O exame de consciência é realizado por diferentes místicas e espiritualidades. Falando propriamente da Espiritualidade Inaciana, ela distingue-se de outras por dar atenção pessoal aos sentimentos, desejos, sonhos, esperanças e pensamentos. E foi Inácio de Loyola que trouxe essa novidade espiritual quando, ainda peregrino, "descobriu Deus ao prestar atenção no que ocorria em sua mente e em seu coração como resultado da leitura e dos devaneios" (William A. Barry). Posteriormente, o fundador da Companhia de Jesus desenvolveu uma prática de examinar-se com frequência no decorrer do dia, para encontrar a “mão de Deus” na experiência do cotidiano. Muita gente escolhe a noite para fazê-lo, mas isso não é regra. Este exame de consciência em nada se assemelha com busca de autopunição, numa enumeração de falhas e “pecados” cometidos, já preparando o cilício para iniciar a autoflagelação noturna. Refere-se, antes de tudo, a uma memória contemplativa, um lançar os olhos e os sentidos para o dia que se encerra, tentando observar, livremente, como Deus se faz presente em todas as coisas e de como eu reagi nos momentos mais significativos.
Independente se somos religiosos ou irreligiosos, crentes ou ateus, a imagem de Deus repassada para nós muitas vezes é de um Deus que está fora de nossa realidade. Aliás, para muitos é um completo absurdo um Deus que se mistura com a gente: “Deus é o santo, o todo poderoso, o glorioso, o justo (justiceiro) ”, gritaria o religioso, demostrando a distância de Deus para com todos, no qual só é possível “senti-lo” através da ascese e da histeria coletiva. “Deus é um sarcástico com amnésia, um delírio fabricado, um pastor de récua de burros”, diria o acético-cartesiano-crítico-iluminista-com-crise-de-sentido. Nos dois fatos vê-se um Deus distante. No primeiro caso, sou “eu” que me distancio, e crio regras e condições para que ele venha até a mim. No segundo, é Ele (se existir) que se distancia, pois, afinal, um Deus que não se revela claramente aos homens e o deixa sofrer nesta Terra só pode ser um sádico. Contudo, nos dois eventos, Deus não passa de um projeto de imagem lançado dentro da minha caverna no qual tento imitá-lo cegamente ou negá-lo violentamente.
De certa forma, as religiões históricas monoteístas, infelizmente, têm mostrado sucessivas contradições no âmbito ético, social e moral. Recentemente testemunhamos casos de fundamentalismo terrorista islâmico; os crimes de pedofilia cometidos pelo clero, e na maioria das vezes acobertados pelos seus superiores; o carreirismo clerical em detrimento das causas fundamentais e preferenciais do Evangelho; a cobiça de pastores (protestantes) e bispos (católicos) por dízimos; a pregação de uma teologia da prosperidade que usurpa a fé de pessoas mais simples; e outros exemplos que tem trazido ou afirmado a desconfiança das pessoas na religião institucional. Entretanto, não obstante a todas essas mazelas e contradições, existe um eixo comum e fundamental entre o ateísmo e a fé, que se revela a partir de uma sincera e honesta autocrítica das duas instâncias: a defesa do gênero humano em todas as suas possibilidades. E esta é a Ética fundamental.
O ateu do século XXI pouco se importa em raciocinar sobre a existência de Deus ou não. “O problema não é Deus, mas a religião” – dizem. Para eles, acabando as religiões, automaticamente finda-se a ideia de Deus. Por outro lado, em algumas espiritualidades, ainda é possível observar uma prática infantil no relacionamento com Deus, com alto grau de sentimentalismo e com formulações retóricas sem sentido. Busca-se compensações (materiais e/ou espirituais) em troca de compromissos moralistas. As imagens descritas acima são apenas algumas das várias que o homem construiu de Deus. Nem vou entrar no mérito das imagens de Deus na história porque não caberia neste artigo.
No entanto, arrisco dizer que uma nova imagem de Deus está para ser encontrada. Ela surge neste mundo secular e plural, e não fora dele. Num Deus que se revela no existencial: na vida, na história e na subjetividade. Um Deus que “liturgiza” todas as coisas através do meu novo olhar. Numa ótica limpa de preconceitos, tudo é liturgia, tudo é sacramento, que impregnado com meus afetos e desejos, tudo me revela Deus. Eu gosto muito de repetir as palavras do jesuíta Benjamin Buelta: “não existe nada de profano para aquele que sabe ver”. Isso me deixa misteriosamente livre. É o Espírito que cria e recria em nós, e por nós, a Vida. Nos sentimos cocriadores do mundo e não refugiados ou inimigos dele.
Este jeito de ver o mundo e a Deus não é nada convencional. Confesso. Subjetividade e obediência, doutrinas e experiência de vida, centro e periferia... Tensões que poderiam dividir, neste caso, vivificam e nos tornam mais criativos! Nesta experiência de uma espiritualidade existencial, vamos nos percebendo parceiros do Universo, partícipe da história. Passamos a relacionar com um Deus que age na história e que por isso se interessa pela nossa. Somos então convidados a dar ouvido e a ir atrás de nossa própria história numa experiência da existência. Peregrino, como outros tantos, seguimos reinventando o encontro com o Sagrado, observando sem medo as moções interiores e as atitudes exteriores (contraditórias ou não). Teimando em conjugar contrários (ou aquilo que dizem que são contrários). Abertos à vida, refazemos uma imagem de Deus personalizada, afastada das estreitas concepções de Deus transmitidas. Isso nos faz desejar uma vontade de sentido para a vida. Não se trata de criar um Deus “a minha imagem e semelhança”, que se adequa às minhas exigências e caprichos. O nome disso é conveniência. Personalização aqui se refere ao modo como eu me relaciono com Deus, de maneira íntima e sincera – personalizada – que me permite atingir a liberdade interior e de vê-Lo além dos templos, normas e liturgias oficiais. As interfaces mudam. Nesta dinâmica eu encontro a Deus, ou o sentido de vida, na poesia, na música, nas diversas expressões artísticas, na arquitetura das cidades, na criança que brinca, no morador em situação de rua que me interpela, no desempregado, nos estudantes que ocupam as escolas, no pobre que não tem nada, no rico que nada tem, nos desafios de ser professor, no meu filho e, claro, na Si fazendo sua “retomada do dia”.
Enquanto ela está na sala, sentada sobre a almofada, em posição de lótus; eu a espero aqui na cama, agradecendo a Deus por tê-la comigo. Faço também meu exame de consciência e percebo que este dia que se finda foi mais um dia extraordinariamente normal. Nada de mais aconteceu! E foi justamente aí que Deus se fez presente, num mysterium tremendum, como ressalta Rubem Alves. Contemplativo, vou iluminando, através da fé, as penumbras de minhas inquietações interiores... em ação, sigo no diálogo com o outro em favor da fraternidade e na utopia de um outro mundo eticamente possível.
*Pedro Lima Junior é pai do Pi e esposo da Si. É historiador, cientista da religião, professor, inaciano, atleticano e gosta de escrever informalmente no blog http://pedrolimajr.tumblr.com/. Colabora agora no site Dom Total.
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