domtotal.com
Para a Igreja, a desigualdade social é intolerável e a humanidade vive uma grave situação de injustiça social provocada por uma economia que mata.
O primeiro critério de avaliação de um governante é a forma como ele trata os mais pobres.
Por Élio Gasda*
Ainda tem sentido falar de justiça social?
As desigualdades sociais vêm aumentando. Em um mundo de opulência, milhares de seres humanos vivem em situação de pobreza e escandalosa miséria. Para os defensores de um sistema capitalista neoliberal, a desigualdade não só é necessária, mas ela está na “essência” deste modelo de sociedade. Neste quesito, governos neoliberais seguem à risca a doutrina dos seus mestres, como Ludwig von Mises: “Desigualdade de renda e de riqueza é uma característica essencial da economia de mercado. Sua eliminação a destruiria completamente” (Ação Humana). Friedrich Hayek é categórico em sua posição: “Aquilo com que nos defrontamos no caso da justiça social é simplesmente uma superstição quase religiosa. E a crença reinante na justiça social é provavelmente, em nossos dias, a mais grave ameaça à maioria dos valores de uma civilização livre” (Direito, legislação e liberdade).
Para a Igreja, a desigualdade social é intolerável e a humanidade vive uma grave situação de injustiça social provocada por uma economia que mata. A justiça é um conceito em torno do qual se estrutura o Cristianismo. Não se pode amar verdadeiramente a Deus e dar as costas aos necessitados (cfr. 1 Jo 5,20). A fé sem obras de justiça é morta (Tg 2,14-18). “A justiça social diz respeito aos aspectos sociais, políticos e econômicos e, sobretudo, à dimensão estrutural dos problemas e das respectivas soluções”. (Compendio da Doutrina Social da Igreja, n. 201).
Pio XI, primeiro papa a utilizar o conceito, defendia que a Lei da justiça social deve pautar a economia: “É necessário que as riquezas, em contínuo incremento com o progresso da economia social, sejam repartidas pelos indivíduos ou pelas classes particulares de tal maneira, que se salve sempre a utilidade comum e que em nada se prejudique o bem geral da sociedade. Esta lei de justiça social proíbe que uma classe seja pela outra excluída da participação dos lucros” (Quadragesimo anno, n.57). Na esfera da economia, o mundo do trabalho é seu campo principal de aplicação. O salário e os direitos trabalhistas são instrumentos necessários para sua efetivação (Quadragesimo anno, n.69). Mas a justiça social não se aplica somente ao campo econômico. Também “as instituições públicas devem adaptar o conjunto da sociedade às exigências do bem comum, isto é, às regras da justiça social” (Quadragesimo anno, n.110).
Porque a insistencia da Igreja na justiça social? A resposta pode ser encontrada no documento Gaudium et spes, do Concílio Vaticano. Sua origem está na dignidade da pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus. “A igualdade fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais reconhecida”. Portanto, “deve eliminar-se, como contrária à vontade de Deus, qualquer forma social ou cultural de discriminação, quanto aos direitos fundamentais da pessoa, por razão do sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião. As excessivas desigualdades econômicas e sociais entre os membros e povos da única família humana provocam o escândalo e são obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e, finalmente, à paz social e internacional” (Gaudium et spes, 29). Também em João Paulo II encontramos a justiça social como um eixo do seu ensinamento. Na “questão de justiça social” os direitos trabalhistas são uma exigência. Por isso “a doutrina social católica considera os sindicatos como um expoente da luta pela justiça social” (Laborem exercens, n. 8).
No Brasil, do alto de seus palácios e seus banquetes, os discípulos de von Mises, Hayek e outros mestres do neoliberalismo, uniram-se no proposito de destruir os direitos sociais, econômicos e trabalhistas. Sacrificam a dignidade da grande maioria do povo brasileiro no altar do deus dinheiro. Nem a ditadura militar, ao longo de quase duas décadas, espezinhou tanto a justiça social quanto estes senhores em tão poucos dias. Em comunhão com Papa Francisco, para quem “ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social”, os bispos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) levantaram a voz diante de mais este atentado contra a justiça social: “A PEC 241 é injusta e seletiva. Ela elege, para pagar a conta do descontrole dos gastos, os trabalhadores e os pobres, ou seja, aqueles que mais precisam do Estado para que seus direitos constitucionais sejam garantidos. Além disso, beneficia os detentores do capital financeiro, quando não coloca teto para o pagamento de juros, não taxa grandes fortunas e não propõe auditar a dívida pública”. O debate sobre a justiça social vai além dos limites estreitos das opções político-partidárias entre esquerda, centro e direita. A referência deve ser os que sofrem as injustiças sociais. O primeiro critério de avaliação de um governante é a forma como ele trata os mais pobres.
*Élio Gasda: Doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
Nenhum comentário:
Postar um comentário