Específico da fé cristã está fundamentado no acontecimento de Deus se tornar um de nós.
Em Jesus, Deus assume a miséria e a pobreza da humanidade. (Reprodução)
Tânia da Silva Mayer*
Ao iniciar o tempo litúrgico do advento, as cristãs e os cristãos católicos se propõem a acolher o Senhor que vem. E num riquíssimo movimento teológico-ritual, são conduzidos à expectativa da vinda definitiva do Filho de Deus, quando no fim dos tempos, ao mesmo tempo em que são exortados a se congregarem ao redor do mistério do nascimento de Jesus e sua revelação como Emanuel. Em ambos os movimentos, o da vinda definitiva na glória e o da vinda à pobreza da manjedoura, está em cena o protagonismo de um Deus que vem ao encontro do ser humano, na sua carne e história. Essa notícia, como Boa-Notícia que é, revoluciona o discurso teológico que não pode compreender a subordinação de Deus ao tempo e ao espaço, e muito menos o fato de Deus experimentar a humanidade se tornando um de nós, com a gente.
O específico da fé cristã está fundamentado no acontecimento de Deus se tornar um de nós, com a gente, em Jesus de Nazaré. Dessa premissa, não se pode abrir mão, se de fato desejamos discursar responsavelmente sobre Deus a partir da fé cristã. O que choca e o que ainda hoje é motivo de loucura e escândalo para os que titubeiam na fé, é o fato de Deus assumir a miséria e a pobreza da humanidade. E a lógica encarnatória afirma que Ele não só assumiu o que é mais precário na condição humana, isto é, a carne (cf. Jo1,14), como, também, preferiu a pobreza do esconderijo dos animais ao luxo dos palácios e às bajulações dos que tramam em próprio benefício. O cristianismo surge de um fato subversivo, conclamando a uma fé que subverte as religiosidades hodiernas simplistas, com suas espiritualidades e práticas eximidas do compromisso com os pobres e sofredores do mundo. O tempo do advento do Senhor deveria inspirar novas espiritualidades e posturas, na esteira de uma leitura criteriosa das Escrituras Sagradas, que comtemplasse as diversas realidades nas quais a vida dos pequenos se encontra ameaçada.
A vinda de Deus à história nos interpela a pensar as realidades, todas elas com potenciais para receber Aquele que vem. Está claro que toda leitura do mundo supõe uma lente diferenciada, que permitirá considerar diversos aspectos de um determinado fenômeno. Nesse sentido, é impossível advogar o privilégio de leitura mais adequada dos fatos, e tudo quanto se der nesse sentido promoverá uma tentativa de moralização do mundo. Mas a vida é, também, percepção da vida e não estamos isentos de arriscar interpretações de tudo aquilo que vivemos. Por isso, quando os católicos se propõem a vivenciar a expectativa pela vinda do Senhor, em postura de espera vigilante, eles devem se perguntar pelo mundo, pela Igreja e por si mesmos que esperam o Senhor. Tudo isso, obviamente, deve ser feito a partir da revelação de Deus, apoiando-se noutras lentes que a humanidade desenvolveu para conhecer e entender o tempo e a história.
Com certa saudade de um tempo em que prevaleça a justiça e a paz, é que compreendemos o nosso mundo em guerras. O massacre que vislumbramos em outros países em guerra, também é visto num Brasil que mata civis em números recordes, apoiados por uma barbárie social que ficcionaliza a realidade em antiga revanche de mocinhos e vilões. Nesse contexto, pressiona-se a escolher entre o policial e o bandido, revelando a selvageria humana, que extrapola as relações de natureza e cultura. Concomitantemente, o prometido mundo globalizado, numa corrida eugenista que assegura o louco poder, descumpre o pacto de que o mundo é para todos, fechando as portas das grandes potências àqueles que, com sorte, não sucumbiram nos mares e desertos desejosos de cruzarem a primigênia fronteira que é o reconhecimento da humanidade pelo semelhante. Morrem pessoas em busca da vida. Das profundezas da caverna de Platão, escutam-se as vozes dos que não veem mais que a própria sombra e advogam a respeito de si mesmos uma conformidade moral farisaica, ao mesmo tempo que ignoram os outros, prometem a cura, a prevenção e a reversão da sexualidade de cada pessoa, essa hóspede e forasteira, frágil enigma humano. São tempos difíceis, tempos em que a “lei” estupra, fere, mata e suicida quem ousa um brado retumbante diferente da “ordem” e da “força”.
Mas da mesma maneira que outrora, escuta-se outras vozes que gritam no meio do deserto nos convidando a preparar os caminhos do Senhor, caminhos de justiça, paz e, sobretudo, misericórdia. Essas mesmas vozes não cessam de anunciar que a salvação se aproxima. Por isso, quem está cochilando na vida e morno na fé deve se sentir interpelado por esse convite, que é também uma exortação. A metáfora da preparação dos caminhos para o Deus que é advento em nossa história, continua sendo ainda a que melhor se aproxima daquilo ao qual somos convidados a fazer, isto é, transformar o mundo até que se instaure definitivamente o Reino de Deus. Por isso, espiritualidades, e consequentemente a práxis dos cristãos e cristãs, devem se erigir ao redor daquilo que efetivamente promove a vida plena e abundante, na esteira de relações radicadas na justiça e na paz.
*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.
EMGE
*O DomTotal é mantido pela Escola de Engenharia de Minas Gerais (EMGE). Engenharia Civil conceito máximo no MEC. Saiba mais!
Nenhum comentário:
Postar um comentário