Os bichos devem ser extintos só porque atravessam nosso caminho?
A ampliação pretendida para o Hospital Hilton Rocha é mais uma agressão à Serra do Curral. (Reprodução)
Por Luís Giffoni*
Enquanto escrevo, vejo a Serra do Curral, o símbolo de Belo Horizonte. Ela me atrai. Atração antiga, telúrica. A vista da janela vem sendo tragada pelos edifícios, depois que a mineração tragou um bom pedaço da própria Serra. Olhe bem as montanhas – foi o nome de uma das primeiras campanhas ecológicas do Brasil, nascida em BH nos anos 1980. Olhamos, olhamos bem as montanhas, mas ainda assim elas foram embarcadas para o exterior e muito mais teria ido, caso a campanha não tivesse êxito. Belo Horizonte perdeu parte de seu belo horizonte. Ganhou uma fratura exposta e, atrás da costela que sobrou depois da exploração de 300 milhões de toneladas de minério, formou-se o lago mais profundo do Brasil. Esse lago, aliás, ameaçou vazar sobre nós. Testemunhei o jorro que atravessava as camadas geológicas e inundava o Parque das Mangabeiras. Foi um deus nos acuda.
Há algumas décadas, dizia-se que BH era uma das 10 metrópoles mais bem protegidas dos ventos radiativos que percorreriam o mundo, em caso de uma guerra atômica, graças justamente à Serra, anjo bom que estendia as asas sobre nós. Com o fim da Guerra Fria, esquecemos a questão. Com a redução da altura da Serra pela mineração, a proteção, em grande parte, deixou de existir.
Centenas de espécies animais vivem na Serra do Curral. Algumas são muito comuns, como o quati, o jacu, o caxinguelê e o mico-estrela, mas outras, como o tatu-galinha, a águia-chilena, a boipeva, a coral-verdadeira e a jararaca, se tornam raras. O que dizer então da Eleutherodactylus izecksohni, uma rã que só existe ali, belo-horizontina antes de Belo Horizonte ser construída, com certidão passada pela evolução há milhares de anos? Durante décadas, gerações de corujinha-buraqueira procriaram no barranco em frente ao Hospital Hilton Rocha, mas a maldade ou a inépcia humana recentemente as enxotou de seu cantinho, quando capinaram a área e cobriram com terra a entrada da toca da ave. Os bichos devem ser extintos só porque atravessam nosso caminho?
A ampliação pretendida para o Hospital Hilton Rocha, por mais que a campanha na mídia tente travesti-la de imprescindível para BH, é mais uma agressão à Serra do Curral. "Olhe bem o edifício" – deveria ser nosso próximo slogan. Existem outras áreas capazes de comportar hospitais, nenhuma evidentemente com a paisagem e o status do sopé da Serra do Curral. Daí a briga de foice em curso.
Aliás, a construção original do hospital aconteceu graças a tráfico de influência e imposição durante o período da ditadura militar. E a lei proíbe ampliação, como bem constatou o Ministério Público. Permitir um novo prédio que invada o símbolo da cidade e bloqueie o patrimônio de todos os belo-horizontinos é submeter o interesse comum ao lucro particular. Dentro de uma democracia, é inadmissível.
Prefiro que o hospital, abandonado há anos, seja demolido e a área, entregue à sua proprietária original, a natureza. Seria uma maneira de mitigarmos os danos irreversíveis já provocados que extinguiram, em alguns pontos, 90% da fauna e da flora originais. No terreno, poderíamos semear uma iridácea, a Pseudotrimezia, que neste início de dezembro solta suas flores bem ao lado do Hilton Rocha. A Pseudotrimezia também é belo-horizontina de nascença. Só tem aqui. Deveria ser a flor-símbolo de BH. Um exemplo de beleza e resistência diante de tanta agressão a seu habitat. Até quando sobreviverá?
*Luís Giffoni tem 25 livros publicados. Recebeu diversas premiações como do Prêmio Jabuti de Romance, da APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte, Prêmio Minas de Cultura, Prêmio Nacional de Romance Cidade de Belo Horizonte.
EMGE
*O DomTotal é mantido pela Escola de Engenharia de Minas Gerais (EMGE). Engenharia Civil conceito máximo no MEC. Saiba mais!
Nenhum comentário:
Postar um comentário