sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Celebrar a paz em tempos de ódio

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Projeto do reino de Deus acontece entre os que são promotores da paz e os que têm fome e sede de justiça e são perseguidos por causa dela.
A palavra paz, shalom, indica a plenitude de todos os bens, saúde, prosperidade, justeza nas relações.
A palavra paz, shalom, indica a plenitude de todos os bens, saúde, prosperidade, justeza nas relações. (Divulgação)
Por Antônio Ronaldo Vieira Nogueira*

Estamos chegando ao final de mais um ano. No dia primeiro de janeiro, celebramos o Dia Mundial da Paz. Nesse período ouvimos muitas saudações, felicitações e bons desejos. As alegrias das festas de natal e fim de ano tomam conta dos corações; ao nos saudarmos, comumente desejamos a paz. Sem dúvida, essa é uma das palavras mais usadas durante esse período e também um dos maiores anseios da humanidade.

No entanto, estamos vivendo tempos sombrios. São muitas as guerras e conflitos pelo mundo. A vingança e o ódio parecem ser a lei maior. Os interesses privados estão acima do respeito à dignidade humana e, com isso, estamos distantes do anseio de paz que temos. Nesse sentido, é importante fazermos uma reflexão sobre a paz para melhor experimentá-la, vivê-la e celebrá-la.

Paz, muitas vezes, é considerada simplesmente como ausência de conflitos, de guerras, de violência. Tudo isso tem a ver com a paz, mas não a define suficientemente. A raiz bíblico-semita da palavra paz, shalom, indica algo muito mais profundo: a plenitude de todos os bens, saúde, prosperidade, justeza nas relações. Na bíblia, a paz está intimamente ligada com a justiça, a qual é expressão de relações equilibradas pelo respeito à dignidade do ser humano. É por isso que o profeta Isaías proclama: “o fruto da justiça será a paz!”; e continua: “A prática da justiça resultará em tranquilidade e segurança duradouras” (Is 32,17).

Isso significa que a paz não é a “paz de cemitério”, ou seja, algo que seja fruto do silêncio de todos e, assim, todos permanecem como estão. A paz, da qual fala a bíblia, também não é a Pax Romana, quando o exército romano sufocava toda e qualquer manifestação contrária ao seu imperialismo e, com isso, os pobres viviam numa situação de opressão total, sendo-lhes negado o direito mais fundamental de vida digna. Isso não é paz.

Por isso, Jesus diz no Evangelho: “não penseis que vim trazer a paz à terra. Não vim trazer a paz, mas espada” (Mt 10,34). Parece esquisito ouvir uma palavra dura como essa saindo da boca de Jesus que sempre pregou o amor e a misericórdia, além da não-violência contra os inimigos. Aparentemente, essa frase vai contra tudo o que ele ensinou e praticou. Mas, na verdade, essa frase de Jesus denuncia uma falsa concepção de paz, estas que enumeramos acima, por exemplo, e mostra que o Reino de Deus acontece somente quando as relações humanas são pautadas pelo respeito e a justeza, no sentido de se prover a vida e dignidade dos que não têm nada. Assim, ser promotor da paz significa promover a justiça, que funciona como uma espada, espada que divide e revela os que defendem o reino da vida e os que promovem o anti-reino da morte e que mata. A paz que Jesus traz é a paz inquieta diante de tantos seres humanos que vivem na miséria e que batem continuamente as portas de nossos corações, denunciando, com seu modo de viver, que a vontade de Deus não acontece suficientemente em nosso meio. Ser surdos aos seus clamores é ser surdo ao grito de Deus através deles. A simples existência de um necessitado significa uma afronta a Deus e ausência da paz, do shalom.

É importante compreender isso, pois, normalmente quando falamos da paz ou da falta dela, nos remetemos imediatamente aos momentos de guerra, como temos visto atualmente, por exemplo, a Síria, o Estado Islâmico, o tráfico e violência nas grandes cidades etc. Aqui também não se tem paz e é preciso buscar meios para mudar tais situações que são uma negação da humanidade. Mas há outro tipo de negação de paz mais silenciosa e da qual, muitas vezes, não nos damos conta. O que temos visto em nosso país, nos últimos meses, é a negação da justiça e, com isso, não se pode ter paz! Mais recentemente assistimos à aprovação da PEC 241/55 que congela os investimentos com os bens mais básicos para a vida e dignidade humana. A nova proposta de reforma da previdência prevê idades mais elevadas para aposentadoria, negando o justo descanso àqueles e àquelas que dedicaram toda uma vida à construção do país e sustento de suas famílias com o suor de seu rosto e agora veem suas forças diminuídas e saúde debilitada, muitas vezes pelas péssimas condições de trabalho que enfrentaram durante toda uma vida. Além disso, a reforma do ensino médio, propagada como benéfica para todos, na verdade, nos parece a tentativa de diminuir a criticidade dos nossos estudantes. Enquanto isso, não se faz uma auditoria da dívida, nem se busca taxar as grandes fortunas. Vivemos em tempos sombrios para os mais pobres. Tudo isso vem ainda acompanhado de certo sentimento de resignação e indiferença. E aqueles que se manifestam contrários a tais posições são, muitas vezes, tachados de arruaceiros, vândalos, contrários à paz. Mas lutar pela justiça é ser promotor da paz.

 Não podemos esquecer que o projeto do reino de Deus acontece entre os que são promotores da paz e os que têm fome e sede de justiça e são perseguidos por causa dela (cf. Mt 5,6.9-10). As duas coisas andam juntas: justiça e paz se abraçam (Sl 85,11). Não se pode, pois, querer e defender a paz quando não se busca melhores condições de vida digna para todos os seres humanos, sobretudo, aqueles que têm tudo isso negado atualmente: os pobres e marginalizados. E isso vale tanto para as situações de exclusão social quanto para as grandes guerras, provocadas por conflitos de interesses e ganância que deixa de lado a busca da justiça nas relações sociais.

Pode-se pensar que tudo isso é muito difícil de acontecer e muitas vezes o desânimo toma de conta: é melhor deixar “tudo como está, pois sempre foi assim”, é melhor “ficar quieto” e em “paz” dentro de nossa casa. Mas o grito do pobre e marginalizado denuncia nossa falsa paz! E Jesus continua ordenando: “dá-lhes vós mesmos de comer!” (Lc 9,13). Por isso, a paz, que é anseio da humanidade, para o cristão é um dever. Sem dúvida alguma, quem luta pela justiça será perseguido como Jesus pelos que não querem perder seus privilégios. Mas isso não nos deve desanimar: é critério de verificação de nossa fidelidade ao projeto de Deus.

E ao lutar pela promoção da justiça que gera paz, o cristão é sustentado pela esperança “contra toda esperança” (cf. Rm 4,18). Por isso, em tempos de ódio, em tempos sombrios de negação da justiça aos mais pobres, o cristão deve ser arauto da luz da esperança. E a luz tem uma dinâmica própria: por menor que ela seja, já vence todo tipo de escuridão. Assim são as iniciativas do cristão, tanto individualmente, quando se põe a caminho na luta pela justiça para promover a paz, quanto em conjunto, como comunidade que gera mudança das estruturas injustas, como fez Jesus. Normalmente, temos muita facilidade de viver a primeira dimensão, quando damos esmola, organizamos cestas básicas, coleta de brinquedos e roupas, especialmente durante esse período do ano. Mas, por mais importante e imprescindível que seja essa dimensão, ela não é suficiente, visto que não vai à raiz mesma da pobreza que é a negação da injustiça. Por isso, é imperativo que o cristão esteja atento às situações e estruturas que provocam tal situação de miséria e marginalização. A mudança das estruturas é fundamental para que tenhamos uma verdade sociedade, justa e solidária, germe e início do reino de Deus. Seja, pois, a justiça nossa luz para que assim possamos promover e celebrar a paz.

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*Antônio Ronaldo Vieira Nogueira é mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) – Belo Horizonte/MG. Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte-CE.

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