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A preocupação atual é libertar a Imaculada Conceição de toda 'ganga maculista'.
A imaculada conceição de Maria exprime o cuidado amoroso e terno de Deus para com suas criaturas. (Divulgação)
Sinivaldo S. Tavares*
No próximo dia 8 de dezembro, celebraremos a solenidade litúrgica da Imaculada Conceição de Maria. Pressuposto fundamental para a compreensão dessa profissão de fé é considerá-la, não a partir do pecado original, mas propriamente no interior do horizonte maior da graça e da benevolência do Deus de Jesus Cristo. Muitos pensam, equivocadamente, que para compreender a Imaculada Conceição, necessário se faz, antes, entender o que seja pecado original para, somente depois, individuar a particularidade desta afirmação acerca de Maria. Conceber a Imaculada Conceição de Maria a partir do pecado original implica numa específica compreensão da salvação cristã. Compreensão esta que, por ter predominado durante muito tempo, produziu a idéia de mérito aplicado ao caso de Maria. Considerando a Imaculada como um mérito, foi se produzindo cada vez mais a imagem de Maria distante e alheia à sorte dos demais seres humanos.
A preocupação atual é libertar a Imaculada Conceição de toda “ganga maculista”, não excluindo propriamente toda e qualquer relação da mesma com o pecado original, mas procurando contextualizá-la no seu justo contexto, vale dizer, da graça e da redenção divinas. A grande tentação em matéria é considerar a Imaculada Conceição como um privilégio que diz respeito unicamente a Maria. Ela foi isenta do pecado original e isto faz dela uma pessoa radicalmente diferente e, portanto, distante dos demais humanos, pecadores e necessitados da redenção divina. Se insistirmos em compreender a Imaculada Conceição da Mãe de Jesus como um privilégio condicionado única e exclusivamente à isenção do pecado, então ficará difícil conceber Maria como o faz a Lumen Gentium: “Em vista dos méritos de seu Filho foi redimida de um modo mais sublime e unida a Ele por um vínculo estreito e indissolúvel, é dotada com a suma missão e dignidade de ser Mãe do Filho de Deus, e por isso filha predileta do Pai e sacrário do Espírito Santo. Por este dom de graça exímia supera de muito todas as outras criaturas, celestes e terrestres. Mas ao mesmo tempo está unida, na estirpe de Adão, com todos os homens a serem salvos” (LG 53).
Se, portanto, considerarmos a Imaculada Conceição no âmbito mais amplo da graça divina surgirá uma relação radicalmente distinta desta doutrina com o próprio pecado original. O ter sido preservada por antecipação do pecado original não distancia Maria da humanidade pecadora. Ao contrário a torna mais sensível e solidária com nossa condição humana decaída e, por isso mesmo, necessitada da graça e da redenção divinas. Neste sentido, tem razão o Catecismo Holandês, quando afirma: “Maria não conheceu a culpa original. Foi concebida imaculada. Vivendo num mundo pecador, ela foi atingida pelas dores do mundo, mas não pela sua malvadez. Nossa irmã no sofrimento, não o é no mal. Ela venceu inteiramente o mal com o bem. Naturalmente o fez graças à redenção de Cristo”.
Nesse caso, instaura-se uma autêntica solidariedade entre Maria e nós. Por ter sido criada pelo Pai “toda santa imune de toda mancha de pecado, predestinada a ser a Mãe do Seu Filho e como que plasmada pelo Espírito Santo e formada nova criatura” (LG 56), ela se revela mais intimamente ligada a cada pessoa e a todas as pessoas por um vínculo deveras estreito. O fato de ter sido “dotada desde o primeiro instante de sua conceição de uma santidade inteiramente singular” (LG 56) não a distancia dos demais seres humanos, mas, ao contrário, a une ainda mais a eles por estreitos laços de solidariedade.
Neste sentido, a Imaculada conceição não deve de modo algum ser concebido como um privilégio que recai unicamente sobre a pessoa de Maria. Não se trata, portanto, de uma espécie di status de superioridade conferido por Deus única e exclusivamente à pessoa de Maria, excluindo-a daquela comunhão solidária com todos os demais seres humanos. Para que, enfim, apareça o significado mais profundo da Imaculada Conceição de Maria é necessário concebê-lo numa tríplice e intrínseca relação: com o Deus de Jesus Cristo; consigo própria e com a inteira humanidade e, por extensão, à inteira realidade criada.
A Imaculada revela no melhor dos modos a inusitada gratuidade divina. Maria foi concebida sem o pecado original por ter sido, na verdade, redimida de modo ainda mais sublime por Deus Pai em Jesus Cristo na virtude do Seu Espírito. Por esta razão, Maria não se eleva até à esfera do divino para nos deixar abandonados e entregues a nossa própria sorte. Pelo contrário, Maria foi a grande agraciada pelo Pai e predestinada a ser a Mãe do Seu único Filho e como que plasmada pelo Espírito Santo. Neste sentido, pelo fato ter sido concebida sem a mancha do pecado original, Maria exprime quão imensa é a misericórdia do Pai e quão incomensurável é sua disponibilidade ao perdão. Nesse sentido, Maria é a pessoa que mais foi perdoada: recebeu uma remissão tão plena que a protegeu de toda culpa. A imaculada conceição é o maior perdão de Deus. De fato, ao ter sido preservado do pecado original, Maria necessitou ainda mais de Cristo do que os demais humanos que não o foram.
O amor de Deus chega ao ponto de penetrar a vida de uma pessoa sem minimanente violentar sua liberdade e nem mesmo ofuscar sua mais lídima singularidade pessoal. Ao contrário, Deus quando visita alguém, plenifica-o com sua graça, potencia ao máximo e no melhor dos modos o que ele tem de mais próprio e pessoal. Esta é, fundamentalmente, a razão pela qual ao tornar a vida de Maria repleta de graça, Deus tornou possível que nela desabrochasse e frutificasse toda a sua singular santidade pessoal. Neste sentido, a imaculada conceição de Maria revela o desígnio de Deus, sua peculiar pedagogia – que poderia ser muito bem descrita como uma espécie de maiêutica – no trato não apenas com as pessoas humanas mas também com todas suas criaturas. Desta forma, Maria pode com razão ser chamada de mulher “toda de Deus e, ao mesmo tempo, tão humana”.
A imaculada conceição de Maria exprime, no melhor dos modos, o cuidado amoroso e terno de Deus para com cada uma de suas criaturas e para com todas elas. Neste sentido, preservando Maria da contaminação de todo e qualquer pecado, Deus fez dela uma nova criatura. Em Maria se concretizou, portanto, aquele sonho que, desde tempos imemoráveis, Deus acalentou e esperou vê-lo realizado em cada ser humano e em todos os seres humanos, seus Filhos diletos. Em Maria, portanto, a interpelação fundamentalmente positiva do Pai encontrou terreno fecundo em termos de acolhida generosa e de radical predisposição para encarnar seus mais lídimos apelos.
A Imaculada conceição de Maria resulta, em última análise, como a expressão mais bem acabada do sim de Deus que ecoa em toda a criação. Se as verberações mais perfeitas de Deus encontraram em Maria acolhida perfeita capaz de produzir ressonâncias harmônicas, então isto significa que o projeto de Deus está em curso e, ao mesmo tempo, que a inteira realidade criada está como que grávida de sua presença e, ao fim e ao cabo, em contínua e crescente implantação. É esta a razão pela qual Theillard de Chardin considera Maria a “pérola do Cosmos” posto que, segundo ele, Maria surge como o elemento catalizador de todas as pulsões que forcejam o avançar da história numa direção fundamentalmente positiva. Ela não se perde mediante inserções nos atalhos abortivos da evolução do Cosmos, verdadeiros caminhos de involução, e pequenas vias que nos conduzem para fora desta direção positiva fundamental e, ainda, nos distraem da verdadeira direção justa e positiva da história que é Jesus Cristo, ponto para o qual convergem todas as forças de crescimento e de unificação do Cosmos.
* Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM. Frade franciscano. Doutor em Teologia Sistemática. Atualmente é professor desta mesma disciplina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) e no Instituto São Tomás de Aquino (ISTA), ambos situados em Belo Horizonte, MG.
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