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Quanto mais em paz, mais fácil de entender tudo.
Mas de onde veio este Mario? (Reprodução)
Por Lev Chaim*
Tem dias em que você se levanta e não entende bulhufas da língua falada ao seu redor. Parece que você aterrou numa terra estranha onde as pessoas falam guturalmente, sem ao menos se importar se você compreende ou não. É claro que falo da minha própria experiência na Holanda. Alguém já me havia dito que conforme o estado de espírito, compreende-se ou não a língua falada, no caso o holandês.
E olhe que tirei diplomas desta língua, o equivalente ao ‘Cambridge’ e o ‘Proficiency’ de inglês. Como também existem dias em que você não faz o menor esforço para entender, como também lê tudo, até romances literários mais difíceis. O segredo, talvez, como disse, pelo menos para mim, seria mesmo o estado de espírito. Quanto mais em paz, mais fácil de entender tudo.
Foi-se o tempo em que eu tentava explicar essas coisas pela voz da razão e do conhecimento. Hoje, creio também na intuição como fator importante para se explicar fenômenos. E quanto mais a pessoa é educada, com mais estudos, mais fácil fica para entende-la, pois as sílabas são todas pronunciadas. Mesmo porque, os iletrados de alguns lugares engolem as sílabas do meio, deixando um vão para que você adivinhe o resto. Ai entra a intuição que diz que o problema não é só meu, mas do outro também. Menos mal.
Pensava tudo isto quando recebi um e-mail de um amigo me convidando para visitá-lo por volta das 11 horas da manhã, pois ele já estava forte para receber visitas. Ele havia saído do hospital, onde permanecera por cerca de duas semanas, com uma crise aguda de bexiga e outros problemas correlatos. Agora, segundo a sua dedicada esposa, tudo estava sob controle. Fiquei contente, peguei um grande pedaço de bolo de laranja que havia feito e lá fui visitar o amigo.
Quando entrei em sua sala e o vi ali, em pé, com o mesmo rosto serelepe de sempre, apenas um pouco mais magro, fiquei contente: meu querido amigo estava de volta e pronto para outra. ‘Mas não agora, disse ele em gozação, mas para daqui alguns bons anos’. Como é bom rever os amigos, principalmente depois do susto todo de ambulância, hospital e toda a parafernália.
Ao detalhar tudo que foi feito com ele no hospital e como os médicos finalmente dominaram a infecção em sua bexiga, uma hora se passou. Quando estava para me despedir e seguir de volta para casa, vem ele com uma surpresa inesperada. Pega um livro embrulhado para presente e diz que o havia comprado para mim. Totalmente surpreendido pelo gesto, peguei o livro e dei-lhe um longo abraço: “A que devo esta surpresa?”. Ele mais do que depressa disse: “Eu o li no hospital! Maravilhoso! Este autor ama as mesmas pessoas que eu e as descreve de uma maneira magnífica. E ele é brasileiro: Mario Sabino. Tentei acha-lo em português mas só o encontrei em holandês ”.
Rasguei o papel de embrulho e logo vi o título: “De zonde die liefde heet” (O vício do amor). À primeira vista, veio-me à cabeça o nome de Fernando Sabino. Ai eu lhe perguntei: “Mas de onde veio este Mario?”. Então meu amigo, com um sorriso diabolicamente maroto, acrescentou: “Eu lhe apresento um escritor brasileiro genial! E desta vez consegui deixa-lo boquiaberto, não é mesmo?” Tive que reconhecer que sim. Não conhecia o Mario, só o Fernando.
Curiosíssimo li nas orelhas do livro que o principal personagem era o próprio escritor, num virtuoso romance sobre a ‘devastação’ que é o amor. As palavras de um dos principais jornais da Holanda, o NRC Handelsblad, sobre o romance: “O prazer intelectual do escritor se desgarra de cada página do livro”. E morto de curiosidade, li, ali mesmo, as primeiras linhas deste romance em voz alta: “Comecei a tomar antidepressivo depois que descobri que a minha namorada, enquanto a esperava em Berlim, estava fazendo sexo oral com um judeu em um hotel de Hessen” - (tradução instantânea).
Não que seja tímido, mas esta primeira frase, ali, deixou-me desconcertado. Tanto os olhos do meu amigo como o de sua esposa estavam fixos em mim. ‘E então? “Chocado e curioso para ler o resto” - repliquei. ‘Pronto, havia dito a verdade’. E a minha curiosidade era genuína, pois jamais havia ouvido falar deste Mario Sabino, o segundo Mario que havia cruzado a minha vida para ficar, acredito eu. Meu dia mudou e o meu holandês ficou fluente, como se fosse até mesmo a minha língua materna. Ia começar a ler este escritor brasileiro, que me foi apresentado por este peralta amigo holandês. Depois lhes conto mais.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou mais de 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o Domtotal.
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