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Benditas férias! Somos imagem e semelhança de Deus também no descanso
O controle rigoroso da jornada de trabalho condiciona os tempos dedicados à família, a convivência social e ao descanso.
Descanso deveria ser um tempo de exercitar a liberdade e a gratuidade inexistente no trabalho. (Divulgação)
Por Élio Gasda*
Sol, calor, praia, serra, sítio. Viajar, conhecer novos lugares, respirar outros ares, dormir até mais tarde, ir ao cinema, visitar museus. Neste período do ano muitas pessoas têm a possibilidade de usufruir das merecidas férias. Dias de descanso existem para descansar. As férias são uma forma de ócio criativo. Lazer também é repouso.
Desligar-se do trabalho não é a apenas uma opção, é uma necessidade. A alternância de trabalho e descanso está inscrita na natureza humana. A riqueza produzida, a evolução tecnológica e de infraestrutura deveria permitir manter ou melhorar o nível de vida com menos esforço. No entanto ocorre justamente o oposto. Há um desequilíbrio notável entre trabalho e descanso. O tempo humano tornou-se um refém do sistema produtivo. Impôs-se a ideia de tempo útil, que não se pode perder tempo, pois tempo é dinheiro. O controle rigoroso da jornada de trabalho condiciona os tempos dedicados à família, a convivência social e ao descanso, por exemplo. O ócio, condenado pela Igreja como pecado capital, reforçou esta ideologia.
O descanso, em sua acepção moderna de tempo livre, foi popularizado a partir da Segunda Guerra Mundial, ao ser reconhecido como um direito na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art.24 e 39). É uma das maiores conquistas dos trabalhadores. As lutas sindicais para conseguir padrões de horas de trabalho resultaram na primeira Convenção de 1919, que estabeleceu o critério de 8 horas por dia na indústria. Posteriormente, foram adotadas numerosas convenções sobre jornada de trabalho. No Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) a partir do artigo 129 e pela própria Constituição Federal em seu artigo 7.º, XVII, institui as férias como um direito de todos os trabalhadores que prestam serviços pelo período de um ano de forma sucessiva. Cada ano trabalhado dá o direito a um período de férias remuneradas. O descanso semanal está previsto no mesmo art. 7º. O Projeto da Terceirização (PL 4330), ao ignorar o descanso, fere a Constituição.
Qual a função do descanso? Regenerar o trabalhador física e psiquicamente para produzir ainda mais? O indivíduo trabalha, entre outras razões, para ter acesso ao mercado do entretenimento, a pagar suas férias. O conteúdo cristão do descanso deu lugar ao consumismo. Até algumas décadas atrás, o domingo era considerado dia Santo, dia de missa. Hoje, faz parte do final de semana. O descanso deveria ser um tempo de exercitar a liberdade e a gratuidade inexistente no trabalho. O indivíduo busca no tempo livre a satisfação que não encontra no emprego. Quem trabalha tem acesso ás benesses do tempo livre que, por sua vez, o devolve à jornada de trabalho com mais disposição. Mas o que é tempo livre para milhares de pessoas que têm a necessidade de redobrar o trabalho devido aos baixos salários, à informalidade, ao desemprego e ao subemprego? O tempo livre não passa de um sonho para muita gente.
Na Sagrada Escritura o descanso tem sua origem no repouso divino do sétimo dia da Criação e na libertação da escravidão do Egito. O ápice do ensinamento sobre o trabalho é o mandamento do repouso sabático. “O descanso permite recordar obras de Deus, da Criação à Redenção, e reconhecer-se a si próprios como obra Sua. A memória e a experiência do sábado constituem um baluarte contra a escravização do homem ao trabalho, voluntário ou imposto, contra toda forma de exploração, larvada ou manifesta. O repouso sabático, mais que para consentir a participação no culto de Deus, foi instituído em defesa do pobre; tem uma função libertadora das degenerações antissociais do trabalho humano”. (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 258). A atividade humana deve espelhar-se na ação divina. Também no descanso a pessoa humana assemelha-se a Deus. Trabalho e descanso são polos da mesma identidade humana como imagem do Criador.
Desde o início, a Doutrina Social da Igreja proclama o direito sagrado ao descanso. Sensível à duríssima realidade dos trabalhadores, Leão XIII defendeu tal direito com veemência (Rerum novarum, n. 30). Para João XXIII, o descanso faz parte do plano de salvação e tem sua origem na vontade de Deus (Mater et Magistra, n.256). A importância do descanso mereceu citação no Concílio Vaticano II: “O esforço responsável e árduo dedicado ao trabalho deve ser seguido por tempo de repouso e descanso que permita cultivar a vida familiar, cultural e religiosa. Ainda mais, que seja capaz de desenvolver livremente energia e qualidades, que no trabalho profissional apenas é possível preservar” (Gaudium et spes, n. 67).
O descanso humaniza. É condição de vida digna. Os trabalhadores têm direito de distribuir melhor seu tempo. “As autoridades públicas têm o dever de vigiar para que não se subtraia aos cidadãos, por motivos de produtividade econômica, o tempo destinado ao repouso e ao culto divino” (Compendio da Doutrina Social da Igreja, n.286). Se o trabalho é um direito fundamental, o descanso é sagrado.
*Élio Gasda: Doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
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