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Dormindo sob o sono dos injustos, sonham com as paisagens que viram na TV de uma loja.
Nestor sabe apenas que ama o seu rato. (Reprodução)
Por Ricardo Soares*
Em São Paulo, bem embaixo do Minhocão, na rua Amaral Gurgel, o menino abraça seu rato. O menino e o rato do menino estão dormindo embrulhados em cobertores encardidos enquanto os ônibus passam, cafés ralos são tomados e marmitas são levadas em providenciais passeios para os serviços. O menino e o rato do menino sonham com as paisagens que viram na TV grandona que estava na vitrine de uma loja ali do centro.
O rato do menino mesmo sujo e alquebrado - tem manchas de massa de tomate, graxa e Nescau - viveu algum tempo em um apartamento fino da rua Haddock Lobo. Um dia seu primeiro dono enjoado dele o jogou no lixo e aí o segundo dono, este que dorme abraçado, o adotou para sempre. Mesmo sujo e alquebrado o nome do rato é Mickey e do menino é Nestor. Mickey pergunta em seu silêncio de pano se Nestor é nome de menino. Disso eu não sei, mas como no samba antigo este Nestor está passando por grande dificuldade.
O cronista não se arrisca a dizer com todas as tintas quais são todos os problemas do Nestor. Tem medo que seu texto vire um arremedo de “Fantástico” ou possa ser tachado de piegas por semióticos e concretistas de plantão. O cronista tem suas bobinhas veleidades intelectuais por isso não vai dizer que Nestor não tem pai ou mãe, perdeu os irmãos e vive há muito tempo na rua. Nestor é pequeno, pequeno demais. Não sabe quantos anos tem nem de quem ganhou as chinelas havaianas que calça agora. Sabe apenas que semana passada amanheceu com elas nos seus pés.
Nestor sabe apenas que ama o seu rato. Acompanha com ele todos os dias a multidão que atravessa a cidade ali perto da Praça Dom José Gaspar. Arrisca-se a pedir alguns trocados e poucas vezes tem sucesso. Porque ele é um menino feio e sujo e tem um rato imundo que chama Mickey e as pessoas preferiam que ele fosse cheiroso e carregasse um rato limpinho cheirando a banheira de motel.
A vida que passa na televisão parece boa aos olhos de Nestor. Lá na TV as vezes as pessoas não estão acuadas e nem parecem ter medo quando descem dos carros e entram nas lojas. Nestor gosta de ver isso assim como aprecia ver as meninas de roupas coloridas comendo pão de queijo ali na rua Libero Badaró. Nos dias frios elas fazem muita fumacinha com a boca de tanto que falam. Nestor gostaria de falar mais, mas não consegue. Prefere ficar mudo como o seu rato que calado como ele acaba se conformando com a vida que leva nas ruas.
Não vou falar da polícia que amola o Nestor. Não vou falar dos meninos mais velhos que batem e roubam o Nestor quase todos os dias. Também não vou falar da vontade que ele tem de fugir com o Mickey para a beira de algum rio e ali ficar pescando uma porção de peixes. Ele e o rato gostam de peixes fritos e de pipoca doce. Também gostam de paçoca, feijão, doce de goiaba, queijo, muito queijo.
O rato olha agora para um ônibus que passa bem ao lado deles. Cutuca o Nestor que acompanha o coletivo com os olhos cheios de remela. É o ônibus Morro Grande que deve deixar Nestor perto de onde dizem que morou sua mãe. Mas é bobagem lembrar que a mãe do Nestor bebia muito, sofria dos nervos e perdeu os dentes. É bobagem lembrar isso porque quem está tendo paciência de ler crônica hoje em dia não há de querer saber das tristezas da vida. Se até Nestor e seu rato querem o escapismo por que não o leitor?
O rato olha o ônibus e olha Nestor. O menino na verdade não presta atenção mais em nada. De uma hora para outra só pensa em ser aquele loiro herói japonês da capa do gibi. A armadura que ele usaria então seria a mais poderosa e a arma que levaria nas mãos teria os raios roxos mais fulminantes do Universo. Assim ele poderia viajar para onde quisesse e ninguém ia mais incomodar. Assim, ele e seu rato poderiam comer todo dia e toda hora. Poderiam jogar fliperama, entrar no cinema e comprar gibi. Por ora, enquanto a temperatura cai, o menino e seu rato só tem uma coisa a fazer. Entrar dentro desta enorme caixa de papelão e cheirar a cola furtada anteontem. Depois, o menino abraçado no Mickey, dormirá sob o sono dos injustos.
*Ricardo Soares é escritor, roteirista, diretor de tv e jornalista.
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