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Na justificativa de que o leitor não vai entender, barateia-se a linguagem.
Ensaio para senhora azul
Por Gilmar Pereira*
A música “Como nossos pais”, eternizada na voz de Elis Regina, tem uma peculiaridade no trecho “E sinto vir vindo no vento o cheiro da nova estação”. Essa fricativa labiodental sonora da letra “v”, repetida três vezes, pode nos remeter à força e ao som do vento soprando: vi-vi-ve... Mas isso é coisa de poeta, de gente sensível às palavras.
Palavras guardam mundos. Têm história, sentidos acumulados, rupturas e evoluções. A manga que nasce da árvore mancha a manga da camisa do menino que quebrou a manga da lamparina. Quando combinadas as palavras criam mais imagens, umas mais complexas que outras. Dizer que o amor “é um andar solitário entre a gente” remonta a imagem afetiva que cada um já pode ter experimentado de estar rodeado e ainda assim se sentir sozinho por que falta algo ou alguém. Complexa porque paradoxal. Atente-se, pois, que imagens não são só visuais, mas afetivas, olfativas, sonoras e outras. Imagem é recomposição, um dinamismo significativo que recria mundos (guardados pelas palavras). Por isso o filósofo Heidegger diz que a “linguagem é a morada do ser”.
Drummond disse para penetrarmos “surdamente no reino das palavras” se quiséssemos escrever um poema. Não devemos nos antecipar ao que queremos escrever, as palavras se nos dizem e, sem querer, um texto se escreve. Basta silenciar, deixar-se afetar pelo mundo, que a palavra que o guarda nos vem. Muito barulho não deixa que se atente a cada som. Muita imagem faz com que não vejamos.
A era da comunicação causou uma poluição informativa. Há muita palavra rasa, barata. E quando um prato poético é oferecido, a ansiedade de leitores desacostumados a penetrar no que leem não os permite saborear o texto, saciar-se de sentido. Saem sem gosto pelo lido. Interpretar um texto é como aprender a degustar uma comida ou bebida. Num primeiro momento as papilas gustativas não fazem grandes diferenças entre vinhos. Acostumados com produtos de má qualidade desprezam sabores elaborados. Mas basta que se gaste tempo, que se saboreie, que o paladar se educa, que o ouvido se abre. Não se tira a criança do peito para dar feijoada. Não se passa dos hits do verão à música erudita, experimental ou folk. Não se passa de textos do facebook à literatura. A pessoa pode não aguentar e regurgitar, desprezando. Porque apreciação estética não é simplesmente coisa de gosto.
Na justificativa de que o leitor não vai entender, barateia-se a linguagem. As mensagens ficam rasas e o interlocutor sai seco. O gosto do suposto “brasileiro médio” faz mudar a fórmula e o sabor de produtos vendidos em outros países. Na busca pelo médio, tudo se nivela por baixo. Dá-se leite para quem já precisa de alimento substancioso. Em vez de nivelar, o melhor é penetrar. Inteligente é quem lê dentro. Mas só isso não basta. Há de se deixar ser transpassado pelas palavras, transformado por elas. Penetra o texto para que o texto te penetre.
Teatro
Uma das artes que mais sofre o baque do nivelamento pela compreensão rasa é o teatro. Na falta de recursos e patrocínios para produzirem obras de envergadura, muitos grupos se veem na necessidade de colocar peças de fácil compreensão em cartaz, geralmente comédias escrachadas de humor fácil. A Campanha de Popularização Teatro & Dança é prova disso. O gênero com maior número de peças é o cômico, sendo que algumas estão em cartaz há anos. Apesar disso, há muitos grupos bons em cartaz com trabalhos geniais de tragédia, teatro contemporâneo, folclórico, musical e outros. As imagens para as quais o teatro nos transporta tem o poder de ampliar nossos horizontes, aprofundar questões e abrir o afeto. Vale a pena conferir a programação e garimpar o que for bom. A campanha acontece em Belo Horizonte, Betim, Juiz de Fora e Nova Lima. Acesse: www.vaaoteatromg.com.br.
*Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, graduado em Filosofia pelo CES-JF, graduando em Teologia pela FAJE. Apaixonado por arte, cultura, filosofia, religião, psicologia, comunicação, ciências sociais... enfim, um "cara de humanas". Escreve às sextas-feiras.
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