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The Young Pope e Pode me chamar de Francisco são duas produções da TV que merecem ser vistas.
Jude Law é o papa Pio XIII na série The Young Pope. (Reprodução)
Por Alexis Parrot*
Ao ser escolhido como papa em 2013, o argentino Mario Jorge Bergoglio trouxe calor e ânimo para um Vaticano que se consumia nas sombras - escândalos de corrupção e pedofilia aí incluídos - durante o pontificado de seu antecessor, o também sombrio Bento XVI. Por entender que a saúde frágil o impedia de atacar de frente os problemas da Igreja Católica, Bento preferiu pendurar as chuteiras e pediu o chapéu - ou a mitra papal, no caso.
E foi aí que o mundo conheceu Francisco, díspar em tudo do cardeal Ratzinger - que antes de ser papa ocupou durante anos a chefia daquela Congregação que, por séculos, foi conhecida pelo amedrontador nome de Santo Ofício. Sai de cena o ex-inquisidor para dar espaço a um rei da empatia e detentor de uma mensagem humanista; de esperança e comunhão para o mundo. E, acima de tudo, um homem que, por sua fé, sempre se viu obrigado a exercer a política.
A construção desse homem (religioso e político) que chega a papa é o tema de Pode Me Chamar de Francisco - minissérie em 4 episódios do Netflix, onde o também carismático Rodrigo de La Serna veste, com a competência de hábito e com delicadeza, a pele do nosso atual Sumo Pontífice.
Somos apresentados a um jovem peronista e torcedor ardoroso de futebol, com formação em química, que abraça a vocação religiosa. Na produção, com uma primorosa reconstituição de época, seguimos os passos do moço Bergoglio, alçado ao posto de provincial da ordem jesuíta para Argentina, Uruguai e Paraguai com apenas 36 anos de idade. Ao tentar se desvencilhar do cargo, dizendo ser muito jovem para tamanha responsabilidade, o provincial geral, em Roma o desanca ao dizer que "Jesus era mais jovem e olha só o que fez".
O roteiro, impecável, com outras pérolas como essa nos diálogos, é um dos pontos altos da minissérie. Ao receber a notícia da aposentadoria de Bento XVI, o já arcebispo de Buenos Aires Bergoglio comenta não entender o porquê de tanta agitação, afinal, "de 500 em 500 anos esse tipo de coisa acontece na Igreja..."
As raízes de Francisco (antes de se tornar Francisco) são descritas com as tintas de um quase herói. Sua resistência - discreta, porém firme - à sangrenta ditadura argentina são o ápice dessa construção. Aprendemos que o provincial Bergoglio escondeu e ajudou a tirar do país vários revolucionários procurados pelos militares no poder de então - chegando a dar os próprios documentos para que um deles se exilasse.
Seria impossível contar a trajetória de Francisco sem que se tocasse a fundo nas feridas da ditadura. Pela primeira vez, a televisão embarcou no horror dos aviões de onde prisioneiros políticos eram atirados ao mar. Lembra o que Spielberg fez no seu A Lista de Schiendler ao penetrar, câmeras em punho, nas câmaras de gás dos campos de concentração nazistas, durante a segunda guerra.
Corre à boca pequena que Bergoglio já teria sido um dos favoritos no conclave que elegeu Ratzinger em 2005. E que teria ido até um a um dos cardeais pedindo que não se votasse nele, argumentando que não estaria pronto para assumir a missão do pontificado. Credita-se a isso o fato de, na época, ainda pairarem dúvidas sobre sua atuação durante o regime de exceção, com destaque para o caso dos jesuítas Yorio e Jalics, sequestrados e torturados pelos militares, na ocasião em que ocupava o provincialato.
No mesmo ano em que Francisco foi eleito para o Vaticano, Jalics veio a público para esclarecer a questão: ao contrário do que os bárbaros torturadores o fizeram crer durante anos, o padre Bergoglio havia sido o responsável não por sua prisão, mas pela soltura dele e de Yorio, cinco meses depois de haverem sido sequestrados. Essa questão é abordada com destaque na minissérie, para que mancha nenhuma cubra a reputação do biografado.
Porém, ficam de fora as polêmicas que acumulou, já como arcebispo de Buenos Aires, contra Cristina Kirchner. Ao declarar-se contrário à união civil entre homossexuais e sobre a possibilidade de casais do mesmo sexo poderem adotar crianças, recebeu uma reprimenda pública da então presidenta. Fica aí, talvez, a única crítica à minissérie do Netflix, por tentar varrer para debaixo do tapete o que não soaria condizente com a imagem que temos hoje do papa. Feliz ou infelizmente, somos todos resultado também de nossas contradições.
O fato principal é que, com Francisco, a figura do papa voltou a ser de interesse geral - inclusive para a cultura pop. Sem ele, dificilmente teria acontecido outra deliciosa produção para a televisão, a série The Young Pope - já exibida na Europa e com estreia prevista para abril no Brasil, pelo canal da FOX, na tv por assinatura.
O ator britânico Jude Law vive Lenny Belardo, um cardeal norte americano de 47 anos que, para sua própria surpresa, é eleito como papa em um conclave manipulado pelo ministro de estado do Vaticano, cardeal Voiello (Silvio Orlando em interpretação irretocável).
Ao assumir o nome de Pio XIII, Belardo já dá pistas de algo de conservador que poderá marcar seu pontificado. Mas ele vai além de qualquer expectativa. O fumante inveterado vivido por Law mostra garras que beiram o fascismo, como a pretensão de expugar totalmente a Igreja de homossexuais em suas fileiras.
Ao tentar melhorar a relação entre os dois, Voiello presenteia o papa com um cigarro eletrônico, apenas para ouvir que o regalo não seria usado, devido à sua preferência pelas "coisas de verdade". A resposta do cardeal: "Então, você veio para o lugar errado." Por mais que soprem novos ventos, uma instituição milenar como o Vaticano é e sempre será um lugar de sombras (e o uso dramatúrgico disso é sempre, no mínimo, interessante).
Mas o personagem Belardo vai contra toda e qualquer corrente. Não viaja, não aparece em público e não permite ser fotografado. Para realçar o mistério da fé e da religião, opta por se tornar um ermitão - justamente na era da imagem e da pós-verdade e na contramão do exemplo de Francisco e de João Paulo II (um homem que entendia de mídia e marketing político como poucos que ocuparam seu trono).
A série é escrita e dirigida pelo italiano Paolo Sorrentino que continua a escancarar seu fascínio por Fellini. É dele o quase follow-up de A Doce Vida, o magnífico A Grande Beleza e o quase remake de Oito e Meio, o mais ou menos Juventude. Pitadas de surrealismo povoam essa primeira temporada da série, como um canguru que passeia pelos jardins da Santa Sé ou a citação direta a Magritte ("isso não é um cachimbo"). Acrescente os suntuosos figurinos do jovem papa que remetem diretamente ao felliniano Roma, na cena do desfile de moda clerical.
A certa altura, Voiello explica o porquê de ter escolhido Belardo para vencer o conclave: era um bispo sem perigo, nem tão conservador, nem tão liberal. O santo padre explica onde o cardeal errou em sua análise: "Ser bispo é uma coisa, ser papa é outra."
É nesse ponto que o papa da ficção se encontra com o papa da vida real. Francisco entendeu a mesma coisa e deixou para trás antigas posições para dar ao mundo um testemunho irrestrito de compaixão.
The Young Pope e Pode me Chamar de Francisco são duas produções que merecem ser vistas. O primeiro, um exercício de ficção memorável e o segundo, a ficcionalização da vida de um homem notável. Ambas abordam religião, fé e política; mas, antes de tudo, representam uma televisão que nos trata como adultos - algo raro e que merece aplausos.
*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.
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