sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Quietinho no carnaval

 domtotal.com
O trabalho domina a vida de uma tal forma que a única coisa que se quer é dormir e descansar um pouco.
Alienação do homem moderno se explica por seu repertório limitado para entender o mundo.
Alienação do homem moderno se explica por seu repertório limitado para entender o mundo.
Por Gilmar Pereira

Alalaô! Mas que calor! Carnaval começando e a animação a mil! E o que a gente quer fazer? Nada! Isso mesmo, a gente quer dormir e descansar. Só isso. É pedir muito? Não.

Na verdade, o problema é que a vida moderna se volta para o trabalho. Já pensou direitinho? O trabalhador comum tem uma carga laboral de 8h diárias mais o tempo de refeição, cuja finalidade é fortalecer a pessoa e ajuda-la a se recompor para o trabalho. Soma-se a isso o tempo que leva para ir e voltar (para onde?) para o trabalho. As 6 ou 8 horas de sono – isso varia muito conforme a resistência e necessidade de cada um – tiradas, em sua maior parte, na cama ou no molejo do ônibus e metrô, também têm em vista o trabalho. “Nossa! Não posso ficar. Tenho que dormir porque amanhã trabalho” – frase comum para apressar despedidas. Todo mundo entende porque todo mundo vive para o trabalho.

O seu estudo? Para ter melhor qualificação no mercado de trabalho. O seu descanso? Para estar bem disposto para o trabalho. O trabalho ocupa o seu dia direta e indiretamente. E o que lhe sobra? O fim de semana e o feriado. Às vezes sobram também aquelas migalhas de tempo diário onde você pode cultivar a criatividade ou se sentir um rei. Por esses momentos muitos foram enganados por certa cultura que lhes faz sentirem-se heróis valentes em resistirem ao ritmo da vida moderna. Quem não aguenta a loucura do sistema moderno de vida é tido como vagabundo ou não esforçado o suficiente. “Você tem que correr a trás” – dizem.

Acontece que a maior parte da população vive correndo atrás. A pergunta é: Atrás de que ou quem? Quem dita o ritmo, o ponto de chegada e a rota? Mas isso não é para se perguntar. Isso é pergunta de quem vê que o trabalhador foi alienado não só dos meios de produção, mas também do próprio tempo e de si. Ou seja, isso é pergunta de base marxista e conseguiram demonizar Marx ao ponto do proletariado defender o sistema injusto robustecido na atual fase do capitalismo.

Em vez de fazer perguntas “esquerdistas”, dá-se consolo aos indivíduos: entretenimento para lavar o cérebro e carga simbólica que corrobora o sistema. Sabe o malfadado “recanto do guerreiro”, sonho masculino de ter um espaço na sua casa com uma churrasqueira onde possa reunir os amigos e tomar uma cervejinha? Pois é, ele leva consigo a ideia de que está tudo certo e que você é um vencedor por ter conseguido apertar a vida aqui e acolá para sobrar um pouco de dinheiro e, depois de alguns anos, usufruir da própria dignidade humana. Desculpa-me, mas nos jogos vorazes da vida, o guerreiro que conquista seu recanto é apenas um sobrevivente.

Contudo, não vamos falar de dignidade humana. Conseguiram demonizar também os direitos humanos. Falar disso é falar “do povo que defende bandido em detrimento do cidadão de bem, do trabalhador honesto”. Note bem, “trabalhador honesto”! Você não é mãe ou pai, filha ou filho, amiga ou amigo, irmã ou irmão, sensível, artista, piedoso, talentosa, inteligente, simpático... nada! O que lhe define é o trabalho. A cidadania, a relação que você estabelece com os outros no âmbito social da polis, expressa-se pela sua vinculação com o trabalho.

Até mesmo a religião tem se comportado como mecanismo a lhe conformar com tal sistema. Na sua melhor vertente, ela lhe dá esperança de que as coisas podem ser melhor e lhe ajuda a construir algum sentido para a vida apesar dessa loucura que fizemos de nós mesmos. Entende como a relação de produção domina o viver? É por isso que a única coisa que a gente quer no carnaval é poder não produzir, é poder fazer algo sem pensar na sua utilidade, é poder fazer nada.

Sabe de uma coisa? As coisas inúteis são as que dão sentido a vida. Pense bem. Mesmo a oração profunda de um místico não serve para nada. Ele não reza nem seque para se aproximar de Deus. Sua persistência em tempos de aridez espiritual só se justifica na gratuidade do amor. Para que serve um beijo? Beija-se e ponto. Para que subir ao alto de uma montanha, sofrendo por horas em alpinismo e ficar no topo por alguns minutos? Pra nada útil. Só pela experiência do belo, da liberdade, de si. Para que a arte? Ela não serve para nada, ela guarda sentido em si.

Isso não quer dizer que das coisas inúteis não se tira proveito. Pode-se rezar para pedir e agradecer, pode-se beijar para demonstrar afeto, pode-se subir ao monte para pesquisar e se exercitar, pode-se fazer arte como protesto. Mas tudo isso já é consequência ou instrumentalização. Algumas coisas não precisam servir para darem sentido, já que têm sentido em si. O problema da preocupação em sempre produzir está no fato de termos sido educados para ficar no lugar servil, não para desabrochar quem somos.

Nesse carnaval, deixa eu ficar quietinho?

A chegada

Toda educação e cultura passam pela linguagem. Na verdade, ela é quem molda o modo com que pensamos. A dificuldade em enxergar algumas coisas está justamente no repertório que se tem. Aqui vale ressaltar que a linguagem ultrapassa o verbal, ela também é visual, sonora, afetiva. Há inúmeras formas de se comunicar e o maior trânsito por elas permite um melhor entendimento do mundo. Pensamento e linguagem se imbricam. Talvez isso explique a alienação do homem moderno, há um repertório limitado para se entender o mundo.

Os discursos atuais baseados na meritocracia e a demonização de formas de pensamento que questionam o sistema tendem a moldar a realidade e alienar o homem da opressão sistêmica em que vive. Não só, mas todas as formas de intolerância propagadas são resultantes de um repertório limitado de mundo. Além disso, os próprios problemas de alfabetização e leitura resultaram numa geração incapaz de interpretar não só textos escritos, mas também imagens e outras visualidades.

Um filme como A chegada (Arrival) é urgente porque trata da comunicação. Candidato ao Oscar 2017, a urgência do filme foi ofuscada pela estética de La La Land. Um dos motes principais e teorias discutidas no filme é a hipótese de Sapir-Whorf sobre a linguagem e, por isso, talvez o filme não tenha ganhado o gosto popular, apesar de ser um sci-fi. Acostumado ao excesso de efeitos especiais do gênero, a sutiliza de A chegada não agrada ao grande público que precisa de alguém para lhe introduzir no seu jogo de linguagem. Professores de filosofia, letras, comunicação e sociologia farão bom proveito, principalmente se transitam em nomes como Austin, Wittgenstein, Russel, Derrida, Searle, Heidegger, Habermas e outros.

A história consiste na chegada de 12 naves espaciais em formato de concha que estacionam em diversos lugares pelo mundo. A interação entre alienígenas e humanos é travada pela linguagem e o filme se concentra nas tentativas de uma linguista e um cientista em entender a que vieram os visitantes. A tensão do longa fica a cargo da possibilidade de uma nação atacar alguma das naves sem a comunicação devida, o que, no filme, é encabeçado pela China, afeita à linguagem bélica.

Um filme não linear-repleto de metáforas e camadas, A chegada é brilhante em sua fotografia e, sobretudo, trilha sonora. As atuações são excelentes e o enredo também. Com certeza é um dos melhores concorrentes à estatueta da academia de cinema. Quem gosta de fazer uma maratona antes da premiação, vale a pena começar por ele e passar um feriado cinéfilo.

Gilmar Pereira
Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, graduado em Filosofia pelo CES-JF, graduando em Teologia pela FAJE. Apaixonado por arte, cultura, filosofia, religião, psicologia, comunicação, ciências sociais... enfim, um "cara de humanas". Escreve às sextas-feiras.

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