segunda-feira, 6 de março de 2017

Carnaval, Chico e o antigo perdão

domtotal.com
Em 1998 a poesia atravessava a avenida e ainda que fosse por um segundo tinha-se a impressão de que vivíamos num país de plenas e definidíssimas tradições culturais.
Chico Buarque foi homenageado pela Mangueira em 1998.
Chico Buarque foi homenageado pela Mangueira em 1998. (Reprodução/YouTube)
Por Ricardo Soares

As lembranças deste carnaval podem ainda estar frescas mas onde andará aquela velha boa lembrança de um carnaval passado? Onde andará o bonde errado que um dia seu avô pierrô tomou equivocado?  Onde andará a fantasia de cigana que hoje a tia recatada oculta no baú da memória? Onde andará a glória dos carnavais de antigamente? Onde andará a marchinha, o sarongue, o pareô, a promessa de riqueza que deveria se cumprir nesse nosso presente?
Há  quase 20 anos (1998) Chico Buarque foi homenageado na Mangueira e voltava a ser unanimidade nacional. Um sorriso tímido que nos redimia, a poética canção que atropelava os surdos e tamborins da avenida, a síntese da tradição lírica interrompida que jogava e recebia beijos da avenida. Mas onde estarão os personagens de suas canções? Os futuros amantes, as mulheres de Atenas, a fêmea que fica como tatuagem, todos aqueles que são como gotas d’água, potes “até aqui” de mágoa? A mágoa pelo ódio ideológico parece agora atingir inclusive o Chico nesses carnavais de intolerância em que o país mergulha.

É sempre bom ver a poesia tijolo por tijolo num desenho mágico atropelando a ilógica dos desabamentos irresponsáveis, dos conflitos carnavalescos ou nem tanto entre Moro e os petistas, entre os golpistas e quem denuncia o golpe. Em 1998 a poesia atravessava  a avenida e ainda que fosse  por um segundo tinha-se a impressão de que vivíamos  num país de plenas e definidíssimas tradições culturais que jamais se curvariam ante o peso da globalização cultural. Por um segundo sentíamos viver no Brasil e não em um enorme Porto Rico repleto de axés, sertanejos, e as tais “apropriações culturais”.

Onde andará nosso futuro que parece não ter pego o bastão da corrida do passado? Onde andará a noção da ausência de pecado do lado de baixo do Equador? Onde andará nosso saudável improviso, nosso dente do siso, nosso irreverente juízo, nosso santo desamor ao que já conhecemos? Onde andará nosso verdadeiro enredo, nossa real alegoria, nosso verdadeiro baile à fantasia? Porque findo o carnaval, vamos lá, o que resta agora é um show de horror. Um baile funesto onde os canalhas nem mais usam máscaras.

Ter visto o desfile de Chico na Mangueira há já quase 20 anos me deu uma saudável sensação de sobrevôo. Uma sensação de que um dia talvez eu possa aterrissar no país certo em hora exata. Um país que tenha mais do Chico poeta e menos dos seguranças que o rodearam, um país que tenha mais Ronaldinhos nascendo nos campos suburbanos e menos Euricos Mirandas ao redor dos gramados  e dos Sambódromos.

Não me guardei para quando o carnaval chegasse porque a energia concentrada talvez venha sendo distribuída em doses iguais no decorrer do ano. Coisa de quem às vezes ainda se imagina menino mas já chega perto dos sessenta e com certo pesar. Então entre um livro de Cony e uma biografia de Balzac entre um filme de Spielberg e outro com a Kim Bassinger passei aquele meu carnaval de 1998 muito longe de avenidas e bailes que já povoaram a minha fantasia. E não  me irritei com as transmissões carnavalescas de televisão porque apesar do Chico todas me dão a impressão de serem iguais . Os desfiles apesar do luxo e riqueza para encher os olhos parecem ser repetidos ano a ano salvo alguma surpresa inventada por intuições gigantes e muitas já finadas.

Agora, na Bahia e no Brasil , parece que o ano começa. Aqui parece que a fumaça volta sempre impávida e o Dória continua. No Rio todos querem fazer as pazes com Deus depois de tantos castigos. No Ceará não tem disso não. No Paraná  o carnaval não pegou nas juntas da Lava Jato  e no Amapá Sarney nem de longe  é mais  a grande sensação. No Maranhão Roseana jaz.

Bye, bye Brasil . A última ficha caiu mas eu continuo apostando. E continuo escapando por desvios com saudades dos que polemizavam. Cansei de verdades tropicais, mingaus da mídia, Jabor, o pensador. Cansei da chata poesia concreta e dos modelitos negros e densos de atrizes experimentais . Cansei da recriação becktiana de velhos carnavais.  Quero as camisas floridas de Jorge Amado e Roberto Drummond.  Quero a mistura de Gabriela com Hilda Furacão, um prato novo que misture acarajé, pão de queijo, tutu e camarão, quero a temperatura do inverno  com a luz do verão, quero meu carro alegórico dentro de  casa e   a alegria ao alcance da mão. Quero até a redenção dos meus erros. Afinal onde andará o perdão?

Ricardo Soares é diretor de tv, escritor, roteirista e jornalista. Dirigiu 12 documentários e publicou 7 livros. E em 2017 vem aí com “Carne de Segunda” ( poesias) e “Amor de mãe” ( novela curta). Escreve às segundas e quintas no DOM TOTAL.

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