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Sempre em defesa da vida, saía Dom Paulo rompendo muros e barreiras, enfrentando as forças escuras do regime de exceção que vivia o país.
Dom Paulo e rabino Henry Sobel no ato ecumênico pelo jornalista Herzog. (Reprodução)
Por Manoel Godoy*
“Defendi os direitos humanos de todo o povo, sem olhar religião, sem olhar ideologia, sem olhar para as capacidades ou possibilidades das pessoas que eram perseguidas, mas sim para que todas elas tivessem seus direitos garantidos e a dignidade humana revelasse o amor divino” (Dom Paulo Arns).
Lembrar-se de Dom Paulo Evaristo Arns, eterno cardeal da Arquidiocese de São Paulo, é fazer memória de uma vida inteiramente dedicada à defesa dos direitos humanos. Nesse tempo em que a mídia conseguiu associar defesa de direitos humanos com defesa de bandidos, é de suma importância ressaltar a trajetória de um homem que gastou sua vida para que tantos pudessem tê-la, e em abundância, como o fez Jesus Cristo.
Em fins de 1970, Dom Paulo assume como arcebispo metropolitano de São Paulo, onde exercia o cargo de bispo auxiliar desde 1966. Em 1973 é criado cardeal pelo papa Paulo VI. Neste mesmo ano, morre, sob tortura, o estudante Alexandre Vannuchi Leme e Dom Paulo teve uma atuação determinante para que ficasse claro que a versão criada pelos representantes paulistas dos ditadores militares que governavam o Brasil, tentando dizer que o estudante havia fugido do presídio e teria se atirado em baixo de um caminhão, era uma enorme farsa.
Em 1975, outra vez Dom Paulo denuncia com veemência e coragem outra farsa do regime, que queria que todos acreditassem que o jornalista Vladimir Herzog tinha se suicidado na prisão. Dom Paulo tomou a decisão de efetuar um ato religioso na Catedral da Sé, mesmo sendo Herzog um judeu. Milhares de pessoas se reuniram para esse ato, apesar da cidade estar sitiada por mandato do secretário da segurança do Estado de São Paulo.
Sempre em defesa da vida, saía Dom Paulo rompendo muros e barreiras, enfrentando as forças escuras do regime de exceção que vivia o país. Seu lema nesta conjuntura perigosa era: Tortura Nunca Mais! Demonstrava firmeza permanente no combate a todo tipo de violação contra os direitos de quem quer que fosse. Dom Paulo era firme nas palavras, mas o que mais incomodava os que apenas queriam viver na zona do conforto eram seus testemunhos. Bem nos primórdios do seu ministério em São Paulo, vendeu o Palácio Episcopal PIO XII, localizado no bairro do Paraíso, mudou-se para uma residência comum no bairro do Sumaré, e com o dinheiro da venda comprou 1.200 terrenos nas periferias de São Paulo, fazendo construir centros comunitários para que o povo pudesse celebrar sua vida e debater seus inúmeros problemas.
Em 1979, quando do assassinato covarde do líder da pastoral operária da Zona Sul de São Paulo, o operário Santo Dias da Silva, outra vez a arquidiocese paulistana se pôs em pé de defesa da vida, em testemunho profético contra todas as violações dos direitos humanos. Carregando o esquife de Santo Dias marchamos da Igreja da Consolação, onde o corpo foi velado, à Catedral da Sé, testemunhando o compromisso inarredável da Igreja paulistana com a defesa da vida.
De extrema importância para a história desse país foi o projeto encampado por Dom Paulo, que constituiu uma equipe de advogados, coordenada pelo pastor Jaime Wright, para documentar 707 processos do Superior Tribunal Militar, com mais de um milhão de páginas, do período de 1961 a 1979. Resultado deste trabalho foi a publicação em 1985 do livro “Brasil Nunca Mais”.
Convivi com Dom Paulo em momentos extremamente significativos para a Igreja de São Paulo, de 1977 a 1989. As campanhas pelas Diretas Já, pela Anistia ampla e irrestrita em tempos de estertor da ditadura militar e sonhos de volta à democracia agitavam nossos horizontes políticos. A Igreja de São Paulo tinha, na figura de seu arcebispo, o parceiro destemido na defesa dessas bandeiras. Estávamos todos nas ruas, sabendo que nosso líder maior da Igreja Local estava conosco, apoiando-nos e nos incentivando. Com o retorno da democracia em 1985, Dom Paulo não arrefeceu sua defesa da vida em todas as circunstâncias e quando termina seu ministério como titular da Igreja de São Paulo afirma: “A democracia plena ainda não chegou. Ela só pode chegar dentro do espírito de solidariedade”.
Dom Paulo Evaristo Arns pode ser chamado sim de o Cardeal dos Direitos Humanos, porém, não podemos dissociá-lo da opção pelos pobres, que nele nunca foi retórica vazia, mas compromisso de vida. Quando perguntado como gostaria de ser lembrado, ele mesmo dizia: “Quero ser lembrado como amigo do povo”.
Às vésperas do natal de 1977, último que celebraria como Cardeal de São Paulo, Dom Paulo deu uma entrevista em que lhe perguntaram: “O senhor ficou conhecido em São Paulo, no Brasil e no mundo como o ‘cardeal dos direitos humanos’. Como o senhor gostaria de ser lembrado na história da Igreja?”, e assim ele respondeu: “Eu gostaria de ser lembrado como amigo do povo. Porque eu defendi os direitos humanos de todo o povo, sem olhar religião, sem olhar ideologia, sem olhar para as capacidades ou possibilidades das pessoas que eram perseguidas, mas sim para que todas elas tivessem seus direitos garantidos e a dignidade humana revelasse o amor divino”.
Fonte: Dom Paulo Evaristo Cardeal Arns: Pastora das Periferias, dos Pobres e da Justiça. Organizadores: Professor Waldir e Padre Ticão. São Paulo: Casa da Terceira Idade Tereza Bugolin, 2015.
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*Manuel Godoy é padre e professor no Instituto Santo Tomás de Aquino e na FAJE, possui graduação em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia Ciências e Letras de Lorena (1976), graduação em Teologia pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (1983), graduação em Pedagogia pela Faculdade Salesiana de Filosofia Ciências e Letras de Lorena (1979) e mestrado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (2005).
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