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Na opinião de Lynn White, Bíblia é responsável pela poluição em nossa época porque os textos da criação ordenam ao ser humano que submeta e domine a natureza.
A ecologia é recente, mas a preocupação com a natureza está presente na Bíblia. (Divulgação)
Por Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*
Quão numerosas, oh Senhor, são vossas obras
e que sabedoria em todas elas!
Encheu-se a terra com as vossas criaturas.
Bendize, oh minha alma, ao Senhor!
(Salmo 103,24, na Vulgata)
O primeiro livro da Bíblia, intitulado Gênesis, nas traduções ocidentais, refere-se às origens dos seres como se fosse uma história de família. Isto é compreensível, pois era comum aos povos antigos se expressarem através de narrativas e não de raciocínios abstratos. É consenso geral entre os estudiosos modernos que os mitos da mesopotâmica serviram de modelo para os primeiros capítulos do Gênesis, mas os autores bíblicos fizeram mudanças significativas por causa da fé monoteísta e de sua forma de compreender o mundo e o ser humano.
Os relatos bíblicos são uma expressão de fé levando em conta o comportamento do ser humano (seus relacionamentos: com Deus, com seus pares e com os demais seres); suas escolhas e seus erros e acertos. E levando em conta também o comportamento de Deus em relação ao ser humano, ou seja, sua permanente fidelidade.
O leitor moderno, desacostumado a encarar o mito como uma reflexão profunda, tem dificuldade de compreender esses relatos e frequentemente se atrapalha, seja fazendo uma leitura fundamentalista, seja desprezando-os como desprovidos de sentido.
Contudo, nos dois primeiros capítulos do Gênesis, a criação é uma comunidade estruturada na qual os seres vivem em mútua dependência, realizando a vontade do Criador: ser fecundos, multiplicar-se e habitar o mundo.
O termo “ecologia” foi cunhado no final do século XIX por Ernst Haeckel (MARGALEF, 1992) e significa ciência do habitat, ou seja, é o estudo das interações entre os organismos entre si e com o ambiente. Trata-se de uma ciência recente posterior à mudança de paradigmas, posterior ao conhecimento sobre a evolução das espécies. Essa ciência não surgiu antes, porque de Aristóteles a Darwin, o mundo natural era considerado estático. Se há evolução das espécies, há dinamicidade, tudo interage e a atividade humana pode desencadear uma crise nos ecossistemas e nas suas inter-relações. A consciência do perigo que o ser humano pode causar ao planeta surgiu com o alto índice de poluição na sociedade pós-industrial. Nada disso estava presente numa sociedade antiga agropastoril, dentro de um horizonte estático, que considerava o surgimento dos seres já completos e acabados.
Pois bem, a ecologia pode ser recente, mas a preocupação com a natureza, e a relação do ser humano com ela, está presente na Bíblia. Mas qual a causa dessa preocupação se a Bíblia foi escrita numa sociedade agropastoril? Qual o propósito dos autores bíblicos ao escreverem os textos da criação?
Na opinião de Lynn White (1967), Bíblia é a grande responsável pela poluição em nossa época porque os textos da criação, no livro do Gênesis, ordenam ao ser humano que submeta e domine (Gn 1,28) a natureza. Isto teve como resultado a civilização judaico-cristã predatória, que provocou a crise ecológica atual. Com essa afirmação, White isenta o capitalismo e o progresso sem sustentabilidade colocando a responsabilidade para a Bíblia e para os cristãos.
Resta então nos perguntar se essa hermenêutica dos textos bíblicos está correta. É certo que os autores bíblicos não tinham a ciência moderna para ver as interconexões na biosfera da Terra. Mas as antigas civilizações, e nisto concorda a Bíblia, tinham uma profunda noção da interação entre os seres. Os autores bíblicos chamam a natureza de criação, mostram que há um parentesco entre os seres, usam o termo hebraico tôledôt (Gn 2,4), que significa genealogia e confirmam a noção de uma “comunidade da criação”, mostrando inter-relações importantes e significativas entre o ser humano e as criaturas, a ponto de a redenção do ser humano ser expandida para a criação inteira (Is 43,19). A conexão entre os seres é tão profunda que uma reconciliação do ser humano com Deus envolve toda a criação (Rm 8,19-23).
Portanto, uma leitura integral da Bíblia nos mostra uma noção de criação que não confirma a acusação de White. O que então o autor bíblico tentou transmitir com os verbos submeter e dominar em Gn 1,28? Lendo esse versículo dentro de seu contexto literário, Gn 1,26-28, temos uma afirmação inicial de que o ser humano é a imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26), ou seja, a humanidade se torna representante de Deus perante os demais seres, isso significa que tem que agir como Deus agiria. O ser humano é um colaborador, por meio do trabalho torna útil o que Deus criou.
O primeiro verbo, submeter, em hebraico kabash, está no sentido de domar algo selvagem para torna-lo útil. Não significa sugar e extenuar a natureza, mas adequar os seres a uma utilidade que ajude na preservação da vida de todos, não apenas do ser humano. O segundo verbo, dominar, em hebraico radah, tem conotação de governar, de prevalecer. Mas não é tratada como inimiga do ser humano. O Homem não deve ir a ela como a um exército inimigo. Então por que esse verbo é usado? Porque o autor está em oposição à idolatria dos vizinhos que consideram os seres da natureza como deuses e exploram as pessoas em nome dessas divindades. Dominar os seres está em oposição a tratá-los como sendo deuses, é uma inversão a deixar-se dominar por eles.
Prova que a Bíblia respeita todos os seres é o sistema sabático, com o descanso semanal, no sétimo ano e no jubileu. No sistema sabático o homem descansa para que os seres descansem, faz parte de seu compromisso com a proteção da criação. Não se podia extenuar o húmus da terra, a vitalidade dos animais e do ser humano. Este era o único meio de garantir o futuro da vida na terra. A terra não suporta a sobre-exploração por homens, ela se torna doente. A terra sofre os efeitos da desobediência do homem à lei de Deus, por isso a reconciliação da humanidade com Deus traz consequências para a criação inteira que ficará livre de exploração (cf. Rm 8,19-23).
Não há como utilizar os relatos da criação para justificar a depredação. Nos evangelhos, as parábolas de Jesus revelam uma forte integração dele com a natureza porque a preocupação com o cuidado da natureza não é recente. O forte vínculo entre os seres é uma consciência de todas as culturas antigas e isto foi incorporado em suas leis, cultos, mitos e poesias.
A primeira cultura a esquecer do vínculo com a natureza foi a cultura industrial, o antropocentrismo moderno deu continuidade à assimetria pagã, politeísta em sentido inverso, pois fez do homem um deus cruel para os demais seres.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRAILOVSKY, Antonio Elio. La ecología en la Biblia. Buenos Aires: Milá, 2005.
BAUCKHAM, Richard. La Bibbia e l'ecologia: Riscoprire la comunità della creazione. Roma: Borla, 2011.
MARGALEF, Ramón. Planeta Azul, Planeta Verde. Barcelona: Prensa Científica, 1992.
PLUNKETT, Patrice de. L'écologie, de la Bible à nos jours: pour en finir avec les idées reçues. Paris: Éditions L'œuvre, 2008.
WHITE, Lynn. The Historical Roots of Our Ecological Crisis,
http://www.uvm.edu/~gflomenh/ENV-NGO-PA395/articles/Lynn-White.pdf acesso em 24 de janeiro de 2017.
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