Quando o Papa Francisco se elegeu a quase quatro anos atrás, em 13 de março de 2013, ele foi escoltado – como todos os papas antes dele – da Capela Sistina até a Sala das Lágrimas. Esse lugar é onde o novo papa descansa por uns instantes – e, sem dúvida, muitos deles derramam algumas lágrimas aí, pensando na grande responsabilidade que recai sobre seus ombros – antes de se dirigir à sacada da Basílica de São Pedro para saudar o mundo como o mais novo líder da Igreja Católica Apostólica Romana.
A reportagem é de Catherine Pepinster, publicada por The Guardian, 05-03-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando Francisco, conhecido até então como Jorge Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, apareceu pela primeira vez naquela noite, ele mostrou-se extremamente otimista, disse brincando que os cardeais foram aos confins da Terra para escolher novo papa. Se fizesse ideia de como seriam estes últimos quatro anos, certamente teria derramado lágrimas na dita Sala das Lágrimas.
Embora amplamente querido no mundo inteiro entre católicos e não católicos, Francisco vem enfrentando uma oposição feroz no Vaticano ao buscar pôr a Igreja Católica de Roma dentro do século XXI, reformar a sua governança, persuadir os cardeais a reverem o que pensam sobre o divórcio e um segundo casamento. Ele tem sofrido uma oposição aberta por parte de alguns prelados.
A semana passada marcou o início da Quaresma, um dos períodos mais importantes do calendário católico – um momento em que os fiéis jejuam, dão esmolas e refletem sobre os pecados da humanidade na preparação da celebração que da crucificação de Cristo e da Páscoa. Normalmente esse período é marcado por oração silenciosa, e no domingo o papa, juntamente com membros da Cúria Romana, sai de Roma para iniciar um retiro de cinco dias. Ele deixará um Vaticano envolto por tensão, tumulto e rebelião. Há inclusive rumores de que um número crescente de funcionários vaticanos acha que ele deveria renunciar.
Na Quarta-feira de Cinzas, primeiro dia da Quaresma, veio um grande golpe, com efeito causado pelos inimigos do papa: Marie Collins, a última sobrevivente de abusos sexuais clericais que participava da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, renunciou frustrada com a falta de progresso e com que chamou de uma “vergonhosa falta de cooperação” por parte de autoridades vaticanas em casos de abuso, salientando a intransigência da Cúria Romana, ou órgão governante, no Vaticano – órgão que o papa quer reformar.
Com a saída de Collins da Pontifícia Comissão, criada pelo pontífice para investigar os escândalos em nível mundial de abusos sexuais cometidos por padres e religiosos, e com a licença por tempo indeterminado do outro representante dessas vítimas, o inglês Peter Saunders, a Comissão perdeu uma certa legitimidade.
Quando saiu, Collins se queixou de que a Comissão carecia de recursos, o progresso era lento e que havia uma “resistência cultural” ao trabalho desenvolvido no Vaticano.
A recomendação feita pela Comissão, de que deveria haver um tribunal destinado a lidar com os bispos negligentes em casos de abuso sexual, foi impedida por autoridades da Cúria Romana, apesar de o próprio papa tê-la aprovado. “Há um setor da Cúria que não se mudou para dentro do século XXI”, diz Collins. “Ele apresenta uma grande resistência a trabalhar com a Comissão. Há pessoas que ainda querem acobertar [os casos de abuso]”.
A oposição que o Papa Francisco enfrenta coloca a Igreja em um território desconhecido. Massimo Faggioli, destacado teólogo e analista da política do Vaticano, escreve: “O status quo do Vaticano está por trás disso. É uma oposição cultural e política que já se fazia visível poucas semanas depois da eleição do Papa Francisco. Estas pessoas são contra mudar o estilo e a posição da Igreja, de uma religião ocidental para uma outra, global”.
Nos primeiros dias de Francisco como papa, os cochichos no Vaticano centravam-se em torno das reformas financeiras que ele queria implementar. O Papa Bento XVI havia renunciado na sequência de uma série de revelações, conhecidas como Vatileaks, que expuseram procedimentos financeiros condenáveis no Vaticano, e Francisco buscou dar-lhes um fim.
A oposição mais incisiva ao papa, no entanto, veio a se desenvolver em torno do seu desejo de debater o matrimônio e o divórcio, a homossexualidade e a família.
Após dois Sínodos dos Bispos voltados a estes temas, em 2014 e 2015, o pontífice produziu o documento Amoris Laetitia, em que, com efeito, pedia que os bispos católicos tomem decisões locais sobre os fiéis divorciados e recasados com relação a receber o sacramento da Comunhão.
O magistério tradicional da Igreja diz que um católico que volta a se casar no civil pode comungar somente se a Igreja tiver também anulado a primeira união matrimonial. Alguns bispos viram em Amoris Laetitia uma orientação para acolher, com compaixão, pessoas à Eucaristia sem essa anulação.
Esta ideia tem ofendido os conservadores. Uma carta escrita ao Papa Francisco por quatro cardeais hostis à mudança foi tornada pública. Ela tomou a forma de uma “dubia”, com os prelados exigindo respostas do tipo “sim ou não” e, dessa maneira, desafiaram a autoridade do papa ao pedir que ele esclarecesse pontos do magistério católico sobre o assunto e sobre a vida cristã.
Os quatro acusadores incluem três cardeais eméritos, mais o Cardeal Raymond Burke, canonista americano arquiconservador que chegou ao ponto de ameaçar emitir uma correção formal ao Papa Francisco no tocante a Amoris Laetitia. Burke tem sido um espinho para o papa há algum tempo.
Este cardeal americano recebeu de Bento XVI uma função jurídica poderosa, da qual o Papa Francisco o removeu. No ano passado, Burke e outros conservadores foram retirados do dicastério vaticano que supervisiona o culto católico. Depois, no começo deste ano, numa contenda envolvendo o papa e a antiga ordem dos Cavaleiros de Malta, que levou à renúncia de seu grão-mestre, o inglês Matthew Festing, o Cardeal Burke foi retirado da função de enviado papal para a ordem. Em poucos dias, pôsteres críticos a Francisco apareceram nas ruas de Roma; o mesmo aconteceu com notícias falsas que alteravam páginas de um jornal oficial do Vaticano com a finalidade de zombar dele.
Essas disputas não têm a ver com choques de personalidade apenas, nem mesmo com a questão do divórcio ou Eucaristia. Elas são muito mais profundas. Trata-se do futuro da Igreja. Se os papas anteriores tivessem ordenado os desejos modernizadores propostos pelo Concílio Vaticano II, realizado 50 anos atrás, o controle da Igreja em geral pelo Vaticano já teria diminuído.
Agora Francisco está tentando passar pelo menos algumas decisões aos bispos e igrejas locais, permitindo que padres e bispos tomem decisões quanto a autorizar a Comunhão aos divorciados. Para os tradicionalistas, eis o início de um período tenebroso.
Christopher Lamb, correspondente em Roma da revista católica inglesa The Tablet, disse: “A mudança fundamental que o Papa Francisco está tentando imprimir é para que a Igreja seja mais pastoral. A Cúria Romana deveria estar servindo a Igreja universalmente, mas Marie Collins, em sua renúncia, expôs o que acontece: um departamento sequer está disposto a responder as cartas enviadas pelas vítimas de abuso”.
Segundo Tina Beattie, teóloga feminista inglesa que organizou eventos “marginais” em Roma antes do Sínodo de 2015 a fim de fazer com que a voz das mulheres fosse ouvida, o Papa Francisco “tem um ponto cego na questão das mulheres” e não as tem ouvido o suficiente. Mesmo assim ela o admira por tentar estabelecer um diálogo.
“Não quero dizer que o papa perdeu a batalha para os seus críticos, mas isso o está deixando vulnerável. O que estas pessoas estão fazendo é quase cismático”, disse ela.
No domingo pela manhã em Roma, o papa terá marcado o primeiro Domingo de Quaresma com um convite ao arrependimento. Mas dificilmente os seus críticos estão em clima de arrepender-se. Eles querem a renúncia papal. Existem rumores de que até mesmo os que votaram em Francisco hoje estão em dúvida.
“É verdade que alguns cardeais podem arrepender-se de terem votado nele no conclave, porém eu não acho que querem a sua renúncia”, diz Faggioli. “Eles sabem que seria bem difícil encontrar um papa querido como ele”.
Como os conservadores se sentiram incomodados
Homossexualidade
Na volta da primeira viagem ao exterior feita ao Brasil em 2013, Francisco disse a jornalistas que não via problemas com uma inclinação à homossexualidade. “Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”
Comunhão aos divorciados e recasados no civil
Em abril de 2016, o papa publicou uma exortação apostólica em resposta aos Sínodos dos Bispos de 2014 e 2015 voltados ao matrimônio e à família. A nota de rodapé número 351 indica a possibilidade de os fiéis divorciados e recasados receberem a Comunhão, passando também a decisão neste caso aos bispos e padres locais. “A Eucaristia (…) não é um prêmio para os perfeitos”, escreve ele. Seis meses depois, quatro dos seus mais ferozes críticos, incluindo o Cardeal Raymond Burke, emitiram suas dúvidas (‘dubia’) documento que desafiava Francisco sobre o que ele pensa a respeito da Comunhão.
Limpando a Cúria
Depois de ser eleito para um mandato reformista pelo Colégio Cardinalício em março de 2013, Francisco começou imediatamente a reformar a Cúria Romana, com iniciativas de organizar as finanças e simplificar alguns procedimentos. Em dezembro de 2016, acusou as lideranças curiais de estarem praticando uma resistência malévola e oculta às reformas – resistência que germina “em cabeças tortuosas”.
Proteção dos menores e escândalos sexuais
Francisco criou uma Comissão para a Tutela dos Menores, sob a liderança de seu aliado próximo, o cardeal-arcebispo de Boston, Dom Seán O’Malley. Em junho de 2015, essa Comissão propôs um tribunal que responsabilizaria os bispos por não lidarem adequadamente com casos de pedofilia em suas jurisdições. Francisco aprovou a ideia, mas a Congregação para a Doutrina da Fé considerou que ela continha problemas legais. Desde então a Comissão está parada.
Lutero tinha razão
Francisco foi à Suécia em outubro de 2016 para marcar os 500 anos da Reforma. Numa celebração na Catedral de Lund, ele elogiou Martinho Lutero por restaurar a centralidade das Escrituras. “Havia corrupção na Igreja, havia mundanidade, havia apego ao dinheiro e ao poder”, disse. Alguns conservadores não ficaram impressionados com essa demonstração de ecumenismo.
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