sexta-feira, 3 de março de 2017

Pequeno drama brasileiro

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Recluso na fundação por um ano ou coisa assim, conseguiram puxá-lo de volta para o convívio social.
- Vou ter crachá?
- Vou ter crachá? (Reprodução)
Por Fernando Fabbrini*

Conheci Valdo num centro de voluntariado, por acaso. Ele passava ali uma vez por semana para tomar aulas de reforço em matemática, tentando fechar o curso médio. Aparecia no centro sem muita vontade de enfrentar os estudos, mas dava as caras com alguma regularidade. Era um rapaz no limiar da idade adulta, pronto para virar homem. Tinha uma cara sorridente e animada, além daquela energia inesgotável dos jovens nessa idade.

Porém, me contaram que Valdo já trazia manchas no seu currículo. Pudera: o perfil era típico de muitos brasileiros como ele. Nascido na periferia, pai desconhecido e mãe ausente, logo se enturmou com as chamadas más companhias. Das privações e apelos da sociedade de consumo vieram pequenos furtos, que deram origem aos roubos, aos contatos com as drogas, contravenções, crimes menores – e Valdo terminou preso.

Recluso na fundação por um ano ou coisa assim, conseguiram puxá-lo de volta para o convívio social. Com certeza, dentro de sua alma ainda dormia uma semente de esperança, à espera de alguém que a fizesse germinar. Foi bem orientado pela turma de lá; deu sorte. E sua simpatia, a cara alegre, as piadas que contavam, a boa-vontade para ajudar nisso ou aquilo logo conquistaram aqueles que com ele foram convivendo.

O centro de voluntariado mantinha convênios com indústrias da região metropolitana. Atentos à questão, criaram um programa de formação de aprendizes voltado principalmente para jovens em situação de risco social. Pensaram logo no Valdo:

- Acho que podemos sugerir o Valdo para a próxima vaga de aprendiz.

- Pois é, ele leva jeito. Gosta de máquinas, está sempre escarafunchando o computador, consertou o chuveiro sozinho...

Ideia aprovada, marcaram uma conversa com o futuro industriário. Valdo chegou à tarde e assentou-se com o pessoal do centro.

- Valdo, falando sério: você não gostaria de ter um emprego fixo, com carteira assinada e tudo?

Ele parecia animado. Brilhou os olhos:

- Vou ter crachá?

A turma se comoveu. O crachá, para Valdo, seria a nova identidade, seu rosto integrado à comunidade, seu passaporte de homem sério.

- Claro, com crachá e tudo. Mas veja bem: lá na fábrica tem regras, você precisa obedecer.

- Tipo o quê?

- Tipo horário pra entrar, pra sair, pra almoçar... Marcar ponto, obedecer ao chefe. E com certeza cortar este cabelo e fazer a barba, andar bem arrumado, entendeu?

Seu sorriso arrefeceu:

- O emprego fica longe?

- Fica; é lá na Cidade Industrial. Você vai ter que acordar cedo, pegar o ônibus, chegar no horário.

- Beleza. E quanto vou ganhar?

Passaram-lhe um papel com as vantagens: salário de aprendiz, plano de saúde, uniforme por conta da empresa e demais benefícios. Valdo olhou; leu e releu, meteu o papel no bolso. Disse “vou pensar e amanhã eu falo” – e foi embora.

Não apareceu no dia seguinte nem no resto da semana. O pessoal do RH da fábrica cobrava a indicação:

- E o tal rapaz, vem ou não vem?

Só deu as caras no centro de voluntariado quase um mês depois do previsto. Chamou o orientador e desabafou, sempre no seu jeito simpático de cara alegre:

- Ô gente, não quero ser aprendiz não. Esse negócio de ter chefe, chegar na hora, acordar cedo... Quero não, de boa! E também vou ganhar mixaria no fim do mês. Esta grana aqui, ó – apontou para a proposta amassada – eu tiro num dia, lá na favela. É só fazer umas entregas pros manos.

*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com quatro livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.

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