terça-feira, 7 de março de 2017

'Who is you, Chiron?': a pergunta espiritual e existencial em Moonlight

domtotal.com
Moonlight retrata um homem que enfrenta dificuldades na busca por encontrar-se no mundo e ser protagonista de sua própria história.
No espelho o olhar introspectivo e melancólico permanece o mesmo.
No espelho o olhar introspectivo e melancólico permanece o mesmo. (Reprodução)
Pedro Lima Junior*

Alerta de spoiler!

Esta talvez seja a pergunta chave que perpassa toda a trama que envolve o filme de Barry Jenkins, indicado a oito Oscars e ganhador de Melhor Filme de 2017. Mas antes de dar continuidade ao texto, explico-me que não estou fazendo uma resenha ou uma crítica cinematográfica técnica ao filme Moonlight -Sob a Luz do Luar. Para isso nós temos os críticos de cinema. Recomendo, portanto, dois amigos próximos que são ótimos críticos: um é da época da graduação em História na UFJF, hoje doutor pela UFF, Wallace Andrioli, que nos presenteia com este texto. O outro é Matheus Pichonelli, jornalista, cientista social, blogueiro do Yahoo e colunista da revista Carta Capital, que nos oferece esta outra crítica. Meu objetivo aqui é apenas colaborar – como um simples espectador e amante do cinema – trazendo uma outra visão, talvez mais atenta a outras dinâmicas, valorizando conteúdos como a espiritualidade, a humanidade, o sentido de vida, etc. E essa intenção foge de qualquer tentativa de reduzir o filme à minha interpretação pessoal. Tento fazer o que mais ou menos fiz na análise da minissérie produzida pela Netflix Pode me chamar de Francisco que você pode ler aqui.

Dadas as devidas explicações, sigamos...

Moonlight, portanto, revela-se grandioso pela capacidade de tratar de realidades duras do sofrimento humano e de conflitos internos, de um protagonista que enfrenta dificuldades semelhantes à de muitas pessoas que buscam – não obstante à realidade pessoal de cada um – encontrar-se no mundo e serem protagonistas de suas próprias histórias.

Com um orçamento modesto, comparado a outros filmes indicados pela Academia, Moonlight conta a história de um jovem morador da periferia de Miami que convive com uma mãe viciada em crack que para sustentar seu vício, acaba se prostituindo. Negro gay, Chiron – o protagonista que se desdobrará em muitos sendo um só – sofre desde criança bullying na escola por apresentar – sem ainda saber direito o que é – sua homossexualidade. O pequeno e confuso Chiron, que é chamado de “little” nas ruas, será acolhido por um traficante do bairro, Juan, interpretado por Mahershala Ali, vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. A figura paterna e afetuosa que falta no pequeno Chiron será recompensada em Juan, que vai ajudá-lo a formar as bases de sua personalidade para uma estrutura a ser construída solitariamente. É com Juan que Chiron, numa cena poética na praia, aprende a nadar e ouve os primeiros conselhos: que um dia ele, Chiron, terá que decidir “quem” e “o que” quer ser na vida, e que esta decisão não deve ser tomada por ninguém, a não ser ele mesmo.

O filme é dividido em três capítulos – “Little”, “Chiron” e “Black” – criando uma narrativa biográfica que não é linear, mas transversal, de quem precisa se revisitar continuamente para ressignificar sua história, recriar modelos, relembrar experiências marcantes na tentativa de descobrir de fato “quem sou eu”. Ora, Little-Chiron-Black são uma única pessoa, um menino-adolescente-adulto, peregrino, que vai incorporando externa e internamente características que muitas vezes destoam daquilo que realmente o é.

E “quem” e “o que” ele é? Este é o clímax da obra, uma pergunta que desperta identificação e ecos no espectador. Ali nos vemos identificados na aventura humana e espiritual em busca de si mesmo. Enquanto a vida se desenrola cheia de dores e descobertas, as máscaras de Chiron vão sendo sobrepostas na tentativa de sobrevivência do ser-adulto-macho: seus dentes de ouro (imitando a Juan), seu corpo atlético, seu carro descolado com o som alto, o traficante com porte agressivo que se tornara, enfim, caricaturas externas que contradizem com o sensível Chiron. Essa desarmonia interna pode ser notada pelas seguidas noites de insônia e a necessidade de se encarar no espelho todas as manhãs, seguida de um ritual de mergulhar a face numa pia cheia de água e gelo. “Desperta, Chiron!”. “Onde está você, Chiron?”. – talvez dissesse a si mesmo. No espelho o olhar introspectivo e melancólico permanece o mesmo, o que pode ser percebido na capa escolhida para divulgação do filme: três rostos em um só, presos e libertos em um mesmo olhar.

E a pergunta chave ressurge com força desestabilizadora quando Chiron, adulto, recebe o telefonema de Kevin, um amigo de infância que há anos não vê e que marcou decisivamente sua vida por duas experiências cruciais: a primeira na praia, repleta de descobertas e desejos. A segunda na escola marcada pela dor e traição. Chiron segue para a cidade onde seu amigo está, mesmo sem saber ao certo o que fazer lá. E ao som de Hello Stranger, de Bárbara Lewis, tocada em um jukebox do restaurante em que Kevin trabalha como cozinheiro, os dois amigos-estranhos se reconhecem. Mas é Chiron que novamente é interpelado pelo seu interlocutor: “Who is you?".

A pergunta incomoda e Chiron é despertado para o Eu. Aquele menino negro de Miami ressurge na praia, brilhando sob a luz do luar que o torna azul, fazendo referência a peça de Tarell Alvin McCraney, In Moonlight Black Boys Look Blue (Sob a Luz do Luar Garotos Negros Parecem Azuis), no qual Jenkins, o diretor do filme, se baseou.

“Blue”. Foi assim também que Juan, o pai-traficante emprestado, confidenciou a Chiron que era chamado quando era menino, por correr a noite sob a luz da mesma lua.

Mas o menino Blue agora é Chiron, não Juan. Parado à praia, ele olha para trás, contrapondo com todas as cenas ao longo do filme em que ele era visto de costas, sempre caminhando, correndo, fugindo... O menino sob a luz do luar olha e o seu olhar é novo, decisivo, penetrante, existencial. A aventura não chega ao fim naquela cena final, pelo contrário, a busca de identidade e de sentido inicia-se. Sua experiência subjetiva, seus afetos impregnados e como os fatos que o afeta, se tornam matéria compreendida, pronta para ser assimilada.

E aqui podemos recordar a teologia de Karl Rahner em sua espiritualidade existencialista, de um Deus que age na história e que por isso se interessa pela nossa. Nesta mística o indivíduo é convidado a dar ouvido e a ir atrás de sua própria história numa experiência da existência histórica. Não se trata de uma observação e/ou de uma análise objetiva e fria da própria história, mas um exercício de alcançar a verdade iluminada pelo sentido de ser, reconhecendo sua condição humana na história.

Diante disso, é somente ele, o protagonista menino-adolescente-adulto, um Chiron craquelado, mas (re)descoberto, que poderá decidir agora “o que” e “quem” ele quer ser de fato. Mais ninguém!

Voltemos à última cena do filme: o menino sob a luz do luar está de pé, à praia, olhando para mim, olhando para você: Who is you?

*Pedro Lima Junior é pai do Pi e casado com a Si. É historiador (UFJF) e cientista da religião (PUC-Campinas). É professor de História e Filosofia, Inaciano e Atleticano. De Juiz de Fora (MG), mora atualmente em Valinhos (SP).

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