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O mundo celebra meio século da publicação de "Cem anos de Solidão".
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Com "Cem anos de solidão", García Márquez ergueu os pilares do realismo mágico latino.
Por Marco Lacerda*
Há mais de dois mil anos, num vilarejo poeirento e esquecido da Palestina, chamado Nazaré, um anjo apareceu na casa de uma moça de nome Maria e anunciou-lhe que ela seria mãe, embora nunca tivesse se deitado com um homem. No tempo devido nasceu um menino numa gruta abandonada, rodeado de animais e pastores. Embora naquele tempo se dissesse que nada de bom poderia sair de Nazaré, o tal menino foi anunciado como a luz do mundo. Acredite-se ou não, o menino cresceu entre os mais pobres até chegar à idade adulta quando tornou-se protagonista de uma revolução nunca vista, uma exibição de realismo mágico que mudou o mundo e dividiu a História em antes e depois dele.
Passados os séculos, no final de um agosto de 1910, uma história semelhante se repetiria. Chegava a Aracataca, na Colômbia – vilarejo não menos pobre e poeirento que Nazaré – a família Márquez Iguarán, depois de uma viagem de dois anos atravessando matas, rios e intempéries, onde compraram uma casa perto da praça principal do povoado. Até então, ninguém imaginava que alguma coisa de boa pudesse sair de Aracataca.
Engano. No dia 6 de março de1927 o lugar celebrou a chegada do primogênito de Luisa Santiaga e Gabriel Elígio, embora muitos preferissem dizer que nascera o neto do coronel Ricardo Márquez Mejía e Tranquilina Iguarán, avós maternos com quem o menino Gabriel foi criado até os oito anos numa terra coberta de bananeiras sob o sol inclemente do Caribe colombiano.
Era um menino num casarão de mulheres, atordoado pelas crenças em coisas do além, cultivadas pela avó e pelas lembranças de guerras, do avô. Foram oito anos de vivências que o tornariam universal em 1967, quando publicou um livro chamado “Cem anos de solidão”. Uns chamam livro de épico, embora Gabo acreditasse que a obra que o impedirá de cair no esquecimento seja a história de seus pais recriada em “O amor nos tempos do cólera”.
Na literatura de Gabriel García Márquez é como se a linguagem existisse para amenizar os horrores da vida, submergindo o leitor, sem que ele se dê conta, num suave e confortável vale de sonhos. Triunfo sem precedentes na escrita do continente, “Cem anos de solidão” ergueu os pilares do realismo mágico latino com a perfeição de seus sons, ritmos, prosa.
Através do livro, o mundo conheceu Macondo, o outro nome de Aracataca, território literário de Gabo, onde transcorre grande parte de sua criação, à qual voltou um dia para descobrir que entre a realidade e a nostalgia estava a matéria-prima do seu ofício. Em Macondo viviam os Buendía, o princípio da lenda, a estirpe de sua obra mais famosa que levava cravada no peito a flecha da solidão e na qual se concentravam maravilhas, prodígios, milagres como aquele de Nazaré.
A comemoração dos 50 anos da publicação de “Cem Anos” começou quinta-feira passada, 26, com uma leitura coletiva na cidade colombiana de Cartagena. "Organizamos, no âmbito do Hay Festival, uma leitura coletiva com a ideia de abrir o ano em que se recorda esse sucesso, essa epopeia que é Cem Anos de Solidão, disse Jaime Abello, diretor da Fundação para o Novo Jornalismo Ibero-americano, fundada por García Márquez.
Antes de tudo, em 2017 completam-se 85 anos do surgimento para a Literatura de uma forma nova de narrar, um universo e uma linguagem próprios, um escritor tímido que detestava perguntas e amava o silêncio, com um encanto pessoal que seduziu intelectuais, políticos e, sobretudo, leitores em todas as línguas do planeta.
Quis uma ironia do destino que o ano de 2012 fosse marcado pela tragédia da demência senil desabou sobre García Márquez, tornando-o incapaz de reconhecer sequer familiares e amigos íntimos, e de escrever. O que será dos personagens do seu universo literário único, agora que perderam a voz? Aracataca continuará lá, mas o que será de Macondo?
O que será do coronel Aureliano Buendía, dos generais latinos em seus labirintos, das tormentas bíblicas do Caribe. O que será das putas tristes do mundo. O que será dos sonhos desse autor, um dos quais era ser pianista de um bar à meia luz, tocando sem que ninguém o visse numa esquina recôndita do Caribe, para que os amantes pudessem se amar com sofreguidão.
Difícil admitir que nunca mais teremos um novo livro de Gabo nas estantes das livrarias. Tampouco leremos os artigos do jornalista cujo grande mérito foi mostrar que uma grande reportagem também pode ser grande literatura. Do homem que sempre escreveu como se a vida fosse uma invenção da memória, fora roubada sua principal ferramenta de trabalho, justamente a memória. Dois anos depois, em 2014, Gabo partiu deste mundo, deixando um rastro de luto e saudade entre os que provaram o sabor de sua literatura incomparável.
Uma entrevista com Gabriel García Márquez
*Marco Lacerda é jornalista e escritor, autor dos livros As flores do jardim da nossa casa, Favela High-Tech e Clube dos homens bonitos. É editor-especial do portal Domtotal.com.
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