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Jejuar é uma opção circunstancial. Fome é não ter comido ontem, não ter o que comer hoje e saber que não há nada para comer nas próximas horas, dias.
Para eliminar a fome no mundo, bastaria 2% dos fundos empregados
para salvar os bancos da crise. (Jaco Klamer/ ACN)
Por Élio Gasda*
Jejuando na quaresma? Por quê? Seu estômago ronca por alguns instantes e lhe parece fome. Você nem percebe que o flagelo da fome não faz barulho, e deveria ser tão ensurdecedor quanto as bombas. Jejuar é uma opção circunstancial. Fome é não ter comido ontem, não ter o que comer hoje e saber que não há nada para comer nas próximas horas, dias. Em fevereiro o Sudão do Sul declarou uma situação de fome com impacto sobre milhares de pessoas. Onde fica o Sudão dos Sul? O preconceito é mais preocupante que a fome de verdade.
Bilhões de seres humanos vivem na miséria em um mundo de abundância capaz de alimentar mais 12 bilhões de pessoas (FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). A fome é mais mortífera nas crianças. Se a tendência não mudar, nos próximos 15 anos 167 milhões estarão condenadas à miséria. A mortalidade infantil afetará 3,6 milhões por ano antes de chegarem ao quinto aniversário (UNICEF, Relatório 2016). Escândalo que deveria envergonhar nossa civilização, mas não. As crianças são da Nigéria, Somália, Sudão do Sul, Burundi, Guiné, Uganda, Haiti. Totalmente invisíveis. Então, ninguém sente a falta delas. Uma criança que morre de fome em pleno século XXI configura assassinato. Imaginou o que significa uma criança morrer de fome?
Alimentos existem e são mais que suficientes. Nas prateleiras são fartos. Contudo, 36% dos cereais, 20% das sementes, carnes e laticínios, 35% dos peixes, 40% a 50% dos vegetais e frutas vão para o lixo. O desperdício de alimentos alcança índices alarmantes. Segundo a FAO, cerca de 1,3 bilhão de toneladas de comida são jogadas fora por ano em todo o planeta. No Brasil, mais da metade do que se produz vai para o lixo: 40 mil toneladas por dia (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
Erradicar a pobreza em todas as suas formas é o primeiro Objetivo da Agenda para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. O segundo é acabar com a fome até 2030 e garantir o acesso de todas as pessoas a alimentos seguros, nutritivos e suficientes (https://sustainabledevelopment.un.org). Para eliminar a fome no mundo, bastaria 2% dos fundos empregados para salvar os bancos da crise. O orçamento da FAO para dois anos é equivalente aos gastos da população de dois países ricos com comida para cachorros e gatos em uma semana. O que a FAO aplica em projetos durante 10 anos, o mundo gasta em apenas um dia com armamentos. O orçamento militar de 2017 dos EUA seria de 602 bilhões de dólares. Donald Trump acrescentou mais 54 bilhões. Investir na guerra é prioridade. “Fabricar fuzis, construir barco de guerra e jogar bombas, significa roubar aqueles que têm fome e não têm comida”. (Eisenhower). O barulho das bombas sufoca o grito dos famintos.
Como alcançar os Objetivos da Agenda se o motor do sistema é a acumulação ilimitada de riqueza? Toda a atividade econômica é direcionada a este fim. Em um sistema alicerçado na desigualdade, o crescimento econômico não combate a pobreza. Se os ricos quisessem combater a fome no mundo, bastaria redistribuir parte de sua enorme fortuna. A causa da fome não é a falta de recursos, mas a maneira como são distribuídos. Os milionários são aliados das estruturas que controlam a concentração da riqueza. A vida humana e a justiça nunca serviram de critérios para eles. O dinheiro é seu único princípio e fundamento. “Quem pode remediar o mal e por avareza esconde o remédio, com razão pode ser condenado como homicida” (São Basílio).
Desigualdade de riqueza é a característica inerente do capitalismo. O sistema não pode prescindir da miséria porque é a produção da miséria que gera riqueza. Em meio à gigantesca riqueza a miséria também se torna colossal. Um abismo intransponível entre Lázaro e o rico avarento (Lc 16, 19-31). De um lado a ostentação dos bilionários; do outro, o calvário dos famintos. A riqueza de alguns poucos se faz a custas da via-sacra de milhões torturados pela fome.
Somente a eliminação da extrema riqueza pode erradicar a extrema pobreza e a fome no mundo. Para São Basílio, a fome desmascara a dimensão política do pecado: “Quem é o avarento? Aquele que não se contenta com as coisas supérfluas. Quem é o ladrão? Aquele que toma para si o que pertence ao outro. Como chamar de ladrão a quem desnuda o pobre? Haverá que dar outro nome a quem não veste ao esfarrapado quando pode fazê-lo? Do faminto é o pão que tu reténs”.
Dar de comer a quem tem fome é a primeira obra de misericórdia. A exortação de São João Crisóstomo indica o verdadeiro sentido da quaresma: “Deus não tem necessidade de cálices de ouro, mas de almas de ouro. Que importa ao Senhor que sua mesa esteja cheia de objetos de ouro se ele se consome de fome? Sacia primeiro sua fome e logo, se sobra, adornai também sua mesa. Ou vais fazer um cálice de ouro e depois negar-lhe um copo de água?” Jejuar sem partilhar é hipocrisia. Ofende a Deus e ao próximo.
*Élio Gasda: Doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
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