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Cerca de 200 índios munduruku ocuparam a área da usina São Manoel, no Mato Grosso.
Indígena na ocupação de São Manoel. (Lunae Parracho/ Reuters)
Por Talita Bedinelli
A enorme estrutura de concreto da usina hidrelétrica Teles Pires, na fronteira do Mato Grosso com o Pará, na Amazônia brasileira, foi erguida onde, há centenas de anos, os ancestrais do povo munduruku foram enterrados. Os ossos, depositados em urnas de barro como prevê a tradição munduruku, foram retirados do local e, por muito tempo, os indígenas não sabiam onde haviam ido parar. É por isso, afirmam, que seus parentes estão tristes, que seu povo vem adoecendo.
A devolução das urnas, para que sejam enterradas em um local onde o "homem branco" não tenha acesso, é uma das reivindicações dos cerca de 200 munduruku que desde a madrugada do último domingo acampam no canteiro de obras de outra usina, a São Manoel. A hidrelétrica está sendo construída no entorno de suas aldeias e em meio a seus locais sagrados, assim como a Teles Pires já está em funcionamento. A São Manoel fica bem no Morro do Macaco e em áreas de cachoeiras em que, para os munduruku, vivem espíritos dos animais.
Além de ocupar locais importantes para a etnia, os indígenas acusam as duas hidrelétricas de causarem impacto no volume de água do rio, prejudicando a circulação deles pelas 130 aldeias que se espalham na floresta, de causar a morte de peixes, afugentar a caça e prejudicar a demarcação de suas terras, paralisada já há uma década. "Tudo de ruim aconteceu. Uma série de violação dos nossos direitos. Roubaram nossas urnas funerárias, destruíram nossos peixes e animais. Essa é a nossa revolta", explica Valdenir Munduruku, uma das lideranças da ocupação. "Nós, em nenhum momento, formos consultados sobre essas obras", destaca ele, que acusa as empresas de descumprirem requisitos de compensação ambiental exigidos pelo Governo. Os indígenas também afirmam que as usinas têm poluído os rios e causados coceiras e problemas de pele, especialmente dentre as crianças.
A empresa responsável pela usina das obras ocupadas rebate. Diz que estão em curso tratativas com o povo munduruku e com os órgãos competentes e afirma, em nota, estar "comprometida em encontrar uma solução que garanta a segurança das comunidades locais, colaboradores e do empreendimento", além de cumprir todas as condicionantes ambientais legais exigidas em lei. Quanto às urnas funerárias, a controladora de Teles Pires não havia enviado, até a publicação desta reportagem, nenhuma resposta para os questionamentos sobre o paradeiro dos ossos que os munduruku afirmam está em seu poder.
Em meio ao impasse, a Funai afirma que o presidente do órgão, Franklimberg de Freitas, irá ao local nesta quarta-feira para avaliar a situação que começou no domingo, quando os munduruku de diversas aldeias chegaram ao canteiro de obras de barco. Lá, fazem rituais e rezas, à espera dos representantes do Governo, que devem começar a chegar na próxima quarta-feira para a negociação. Eles afirmam que só deixarão o local quando suas reivindicações forem atendidas. Há uma lista, com 12 pontos. O primeiro é a visita às urnas funerárias que foram retiradas da área da Teles Pires, e seu posterior enterro em "uma terra em que nenhum Pariwat (branco) tenha acesso". Há ainda pedidos como a criação de um fundo com recursos para a construção de uma universidade indígena e para proteção dos lugares sagrados, uma audiência pública para que as empresas prestem esclarecimentos sobre os impactos causados e um pedido formal de desculpas pela destruição dos locais onde estão suas divindades, além da criação de um museu em que se possa relembrar desses locais perdidos pelas obras.
Eles querem ainda o fim da construção de novas hidrelétricas na Amazônia, uma preocupação global. Um estudo publicado na revista científica Nature no mês passado mostra que ao longo da floresta, nos diversos países que a dividem, existem 428 barragens planejadas, que se saírem do papel poderão ter um impacto “desastroso" sobre os rios amazônicos. Os munduruku convivem com o medo da construção de uma terceira usina próxima, a de São Luiz do Tapajós, que por ora não deve sair do papel, já que sua licença foi negada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), em 2016.
Compensações pela obra e geração de energia
Um relatório produzido pelo Fórum Teles Pires, que reúne movimentos sociais locais e é citado pelo Ministério Público Federal em suas petições, ressalta que os processos de planejamento, licenciamento ambiental e implantação das duas usinas subdimensionou os impactos e riscos socioambientais, que houve ausência de qualquer processo de consulta aos povos indígenas impactados e foram dadas concessões de licenças prévias pelo Governo contrariando pareceres técnicos da própria Fundação Nacional do Índio (Funai). Segundo o relatório, também foram dadas licenças sem o cumprimento de condicionantes compensatórias pela obra, especialmente no que se refere ao componente que afeta os indígenas.
O relatório também destaca os efeitos da destruição dos locais sagrados para a etnia. "Os povos indígenas enxergam o território em constante interrelação entre o mundo espiritual e o material, afirmando que as alterações que estão sendo realizadas pelos empreendimentos os afetam na vida cotidiana, pois há retaliações do mundo espiritual para aqueles que devem guardar os locais sagrados; no caso, os indígenas são castigados com acidentes, doenças e picadas de animais, em decorrência da construção das usinas", ressalta o texto."Imagine se tivéssemos nossa igreja de culto inundada e nossos filhos vomitassem em nossa frente cheios de manchas na pele, e isso fosse total ou parcialmente causado pela ação de uma concessionária de energia hidráulica que não quis nos ouvir para impor medidas de mitigação e compensação com as quais não tivemos oportunidade de refletir", questionou o procurador do Ministério Público Federal, Malê Aragão Frazão, em um de seus documentos enviados ao Judiciário.
O Ibama, responsável pela área ambiental na administração federal, afirma que a Funai vem monitorando o atendimento do Plano Básico Ambiental Indígena (PBAI) de compensação das hidrelétricas e que aguarda o posicionamento do órgão em relação ao pedido de emissão da licença de operação para a usina de São Manoel, cuja controladora prevê que já esteja gerando 700 megawatts de energia no ano que vem. Teles Pires, inaugurada em 2015, tem potência instalada de 1.820 megawatts, suficiente para abastecer 5 milhões de habitantes.
El País, 18-07-2017.
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