sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Em meio à avalanche eclesial, questões reais sobre o papado podem ficar obscurecidas

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Parece realmente intrigante como um auditor cuja posição foi projetada para responder apenas ao papa pôde ter sido mantido fora de contato com Franciscopor mais de um ano.
Nos últimos seis dias, o Papa Francisco foi submetido a três acusações extraordinárias, cada uma proveniente de fontes diferentes e abrangendo campos diferentes.
Nos últimos seis dias, o Papa Francisco foi submetido a três acusações extraordinárias, cada uma proveniente de fontes diferentes e abrangendo campos diferentes. (AFP)
Por John L. Allen Jr.*

Nos últimos dias, o Papa Francisco enfrentou três acusações surpreendentes – uma de sofrer de transtorno de personalidade narcisista, outra de heresia e uma terceira de deixar a bola cair na reforma financeira do Vaticano. Diante disso, um dos maiores problemas é que, em um ambiente definido pela histeria, separar a crítica legítima das lamúrias de sempre é cada vez mais difícil.

Nos últimos seis dias, o Papa Francisco foi submetido a três acusações extraordinárias, cada uma proveniente de fontes diferentes e abrangendo campos diferentes. Em poucas palavras, aqui estão elas:

- No dia 17 de setembro, um blogueiro e escritor italiano de direita, chamado Maurizio Blondet, baseando-se em uma reportagem de um jornalista argentino, acusou Francisco de sofrer de transtorno de personalidade narcisista, que Blondet afirma ter se manifestado durante o tempo em que o futuro papa foi provincial jesuíta nos anos 1970. Blondet afirma que isso definiu a sua carreira desde então, inclusive no papado.

- No último sábado, um grupo de 62 teólogos, outros acadêmicos e clérigos – embora apenas um bispo, Dom Bernard Fellay, da cismática e tradicionalista Fraternidade São Pio X – acusou Francisco de propagar heresias no seu documento Amoris laetitia, além da sua cautelosa abertura à comunhão para os católicos divorciados em segunda união.

- Também no sábado, o ex-auditor-geral do Vaticano, o empresário italiano Libero Milone acusou o papa, essencialmente, de renunciar à reforma financeira, dizendo que “ele começou com as melhores intenções”, mas foi impedido por uma velha guarda disposta a usar intimações e destruições de caráter para demolir qualquer um que ameace o seu controle sobre o poder.

Aqui está o principal problema com tal avalanche de acusações: torna-se difícil distinguir o que genuinamente merece um exame mais aprofundado de questões que são, em essência, as lamúrias de sempre ou são duvidosas sobre ele.

Especificamente, há um risco de que as sugestões muito sérias feitas por Milone sobre o estado da tão anunciada reforma financeira de Francisco escapem pelo ralo por causa do ruído gerado por tudo isso.

Antes de seguir em frente, eis um breve resumo de cada ponto.

A afirmação de Blondet baseia-se no trabalho de um jornalista argentino chamado Alejandro Brittos, que publicou uma reconstrução do passado do papa, no início de julho, intitulada “Como o ‘humilde’ Bergoglio preparou sua ascensão à cúpula da Igreja”.

Entre outras coisas, Brittos cita uma carta de dois ex-noviços jesuítas que foram formados pelo futuro papa, que afirmam que ele era autopromocional sobre suas virtudes de humildade e simplicidade, e que buscava a submissão e lealdade completa de seus discípulos – ambos indicadores, para Blondet, de uma personalidade narcisista. Ele continua citando descrições clínicas do transtorno, que ele também afirma que caracterizam o estilo de liderança de Francisco como papa.

Quanto à acusação de heresia, ela vem de um grupo de pensadores, escritores e clérigos, muitos dos quais estão próximos da tradicionalista Fraternidade São Pio X, fundada pelo falecido arcebispo francês Marcel Lefebvre.

A carta de 25 páginas acusa Francisco de propagar sete posições heréticas sobre o matrimônio, a vida moral e os sacramentos com o seu documento de 2016 sobre a família, Amoris laetitia, e “atos, palavras e omissões” subsequentes, afirmando que, em conjunto, esses erros criam um “grande e iminente perigo para as almas”. Os signatários pedem que Francisco “rejeite publicamente essas proposições”.

Os organizadores da carta, que acreditam que Francisco sucumbiu aos erros do modernismo condenados pelos papas anteriores, afirmam que esta é a primeira vez desde 1333 que um papa é formal e publicamente “corrigido” dessa maneira.

Por fim, Milone, que renunciou como auditor-geral do Vaticano em junho, sem explicações, rompeu seu silêncio de três meses no sábado, para acusar que havia sido vítima de um assassinato de caráter e de intimação por parte de forças da velha guarda no Vaticano, hostis à reforma. Ele também sugeriu que o papa basicamente capitulou perante essas forças hostis à mudança.

“Eu acho que o papa é uma grande pessoa e começou com as melhores intenções”, disse Milone. “Mas eu temo que ele tenha sido bloqueado pelo velho poder que ainda está todo lá e se sentiu ameaçado quando entendeu que eu podia relatar ao papa e a Parolino que tinha visto nas contas” (a referência é ao cardeal italiano Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano e efetivamente o principal assessor do Papa Francisco).

Então, o que uma pessoa razoável deve pensar?

Primeiro, a sugestão de que Francisco tenha algum tipo de transtorno psicológico não é nova. Ela tem circulado por um bom tempo no mundo católico tradicionalista profundamente conservador, embora tenha ganhado um novo fôlego a partir de um recente livro-entrevista entre o pontífice e o sociólogo francês Dominique Wolton, em que Francisco disse que, quando tinha 42 anos e era provincial jesuíta, ele se consultou com uma psicoterapeuta por seis meses “para esclarecer algumas coisas”.

Segundo, a acusação de heresia também não é realmente nova, já que ela está em circulação desde que a Amoris laetitia apareceu. A afirmação de que tal correção não havia sido emitida por quase 700 anos também é exagerada, já que dificilmente esta é a primeira vez desde 1333 que alguém escreveu a um papa para acusá-lo de trair a fé.

Terceiro, Milone está fazendo uma acusação substancial que corre o risco de ser obscurecida ou minimizada em meio ao frenesi em torno de qualquer outra coisa.

O seu relato provavelmente é o menos contaminado por motivos ideológicos, já que Milone basicamente é um homem de negócios e um contador, e não um ativista político ou teológico. Se o que ele está dizendo for verdade, Francisco essencialmente abriu mão da reforma financeira e está se contentando em permitir que o estilo de sempre no Vaticano se reafirme, enquanto ele busca outros objetivos.

Diante disso, parece realmente intrigante como um auditor cuja posição foi projetada para responder apenas ao papa pôde ter sido mantido fora de contato com Franciscopor mais de um ano, e também como foi possível que, quando chegou a hora de dizer a Milone que ele perdera a confiança do papa, a mensagem foi entregue por um subordinado, apoiado pela ameaça de prisão e não pelo próprio pontífice.

Além disso, há evidências independentes suficientes, incluindo um julgamento vaticano por apropriação financeira indevida que está acontecendo agora, no qual o cardeal italiano no cerne do caso foi cuidadosamente isolado da responsabilidade, para indicar que, pelo menos, vale a pena levar seriamente em consideração a sugestão de Milone de que há uma reversão.

No clima atual, o problema é que alguns dos mais ansiosos para apoiar a ideia de que Francisco deixou a bola cair em termos de reforma financeira têm fortes incentivos ideológicos para fazer isso, na esperança de modelá-la como uma acusação do próprio pontificado. Outros que, em diferentes circunstâncias, podem estar inclinados a olhar as coisas de forma objetiva, provavelmente verão tais sugestões como mais um elemento na trama maquiavélica para destruir o papa.

Se a verdade é a primeira vítima da guerra, em outras palavras, então talvez se possa dizer igualmente que a perspectiva é a primeira vítima da histeria. Aqueles que ainda são capazes de manter a compostura, no entanto, podem querer prestar atenção especialmente à história de Milone e a como ela vai se desenrolar.


Crux/ IHU - Tradução: Moisés Sbardelotto.

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