quarta-feira, 20 de setembro de 2017

O que é liderança inaciana?

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A liderança é muito mais do que ser o chefe.
Humildade, liberdade, consolação, senso de direção e discernimento são as 5 características da liderança inaciana.
Humildade, liberdade, consolação, senso de direção e discernimento são as 5 características da liderança inaciana. (Ethan Weil/ Unsplash)
Por Sarah Broscombe

Definir as qualidades de um líder inaciano é uma tarefa quase impossível, diz Sarah Broscombe, e assim deve ser, porque a liderança inaciana não pode ser reduzida a "uma teoria já pronta com ferramentas e práticas estreitas. É uma disposição da mente, do coração e da vontade”. Existem, no entanto, certos traços como "giros de bússola", que podem ser úteis para aqueles que querem entender o que significa liderança na tradição inaciana.

Qual é a sua reação interna quando você ouve a palavra "liderança"? Para alguns, ela evoca um arcabouço de responsabilidade. Outros se desligam imediatamente - "Eu não sou um líder de nada" – outros respondem com mais cinismo: "Aqui vamos de novo, a fala corporativa!" Para outros ainda há uma conexão pessoal: "Ah sim, lembro-me daquela pessoa inspiradora que eu teria seguido até um edifício em chamas".

O que torna a liderança inaciana especial tem algo a ver com a reação frente ao edifício em chamas. E assim deveria ser. Inácio de Loyola tinha algo do atrativo contra intuitivo de Jesus, assim como também os líderes dentro do seu entorno. Se há um interesse crescente no conceito de liderança em geral, e a liderança inaciana em particular, é porque o nosso mundo contemporâneo (político, ambiental e social) tem contado com um exemplo não muito bom de liderança, ela tem sido má e muitas vezes até ausente nas últimas décadas. Muitas crises nos confrontam, todas as quais clamam por líderes valentes e autênticos. Isto é urgente.

A liderança é muito mais do que ser o chefe. Isto é especialmente verdadeiro na forma inaciana, onde a liderança não é simplesmente um subconjunto do poder posicional. No contexto da liderança inaciana a hierarquia é estruturada como uma via de mão dupla, não uma via unidirecional (cada provincial ou superior regional se retira depois de seis anos no escritório). A liderança inaciana bate diretamente na vocação - cada jesuíta lidera, bem ou mal. E o domínio da liderança inaciana não se estende apenas para os diretores dos locais de trabalho jesuítas. Como o mostram os jesuítas de Grã-Bretanha, de uma maneira surpreendentemente clara no último “31 dias de Inácio”, um programa e evento de oração e formação sobre a cultura inaciana organizada pelos jesuítas britânicos. Todos os alunos formados por uma educação inaciana são educados para liderar, sejam eles diretores ​​ou não. Se você é inaciano, você está chamado a estar ciente de como você está liderando sua vida, e o impacto disso nos outros.

Muitas vezes eu ouço os líderes inacianos caracterizados como empáticos, abertos às mudanças, colaborativos e com um propósito claro. Mas também são verdadeiros modelos seculares. A nível pessoal, todos os líderes excelentes precisam de auto compreensão, integridade, autenticidade e coragem. Interpessoalmente, eles devem estabelecer uma boa comunicação, motivação, inspiração e empatia. Organizacionalmente, eles precisam ser estratégicos, visionários, com propósitos claros e orientados para a missão. Mas a liderança inaciana não é simplesmente uma boa liderança genérica temperada com o “jeito jesuíta”. A distinção é mais fundamental do que isso.

O que distingue um líder inaciano, então? As formulações simples são muito banais, porque a "liderança inaciana" não é uma teoria coerente, nem uma série de estudos. É uma experiência vivida que se submerge no mundo, uma disposição profundamente enraizada nos Exercícios Espirituais e na história dos jesuítas. Eu ouvi jesuítas dizerem "Você pega isso por osmose", ou "Apenas viva". E eu concordo que é irredutível a uma fórmula predefinida. Mas para aqueles novos nos ambientes jesuítas, ou atraídos pelo que encontraram e que desejam entender mais profundamente, é necessário algum ponto de partida.

Um recente programa de liderança inaciana de 18 meses oferecido pela Conferência dos Provinciais Europeus foi confrontado com algumas dessas questões. Nós, como equipe de treinamento, formamos leigos e jesuítas, esta vez os participantes vieram de 22 países abrangendo uma concepção bastante ampla de "Europa" (de Moscou para o Líbano, de Portugal para o Quirguistão). Isso proporcionou um rico crisol de expectativas e experiências. Para mim, também ajudou a cristalizar pensamentos que gradualmente se formaram na última década. Nesta fase, eu quero sugerir cinco qualidades típicas dos líderes inacianos - típicas, quer porque estão ligadas a características distintivas da espiritualidade inaciana, ou porque o ensino inaciano pode matizar ou enriquecer o que já conhecemos sobre a liderança de outras fontes ou pela nossa própria experiência. Estas cinco caraterísticas são oferecidas para provocar o pensamento, definitivamente não em uma tentativa de compreensão total. Mas sem nenhum deles, ficaria difícil entender a liderança como inaciana.

Humildade

A humildade inaciana não consiste em compensar ansiosamente as fraquezas com as forças, nem consiste em se comparar com os outros, ou na abnegação absoluta (mantendo a cabeça baixa e a boca fechada). Significa ver-se a si mesmo, verdadeira e proporcionalmente, num mundo diferente graças à obra de Jesus Cristo. "Se o evangelho é verdadeiro, então Cristo revelou potenciais na condição humana para tirar bem do mal... Além disso, somente desde o pecado e da degradação pode ser apreciada a grandeza total do redentor". [1] A humildade se atreve a olhar porque sabe que é amada. Também se atreve a ser humilhada sem acreditar que o mais importante de si mesma seja diminuída pela humilhação. A falsa humildade ataca o sentido de dignidade e a própria dignidade de uma pessoa. A verdadeira humildade nos liberta da pressão de tentar ganhar valor. Quando Ignácio descreve o terceiro grau de humildade nos Exercícios Espirituais, ele fala de escolher a pobreza com Cristo pobre e os insultos em vez das honras. [2] Nós escolhemos algo diferente, não porque somos viciados no auto sacrifício ou na abnegação, nem porque somos alérgicos ao poder, mas porque amamos muito Jesus e desejamos caminhar com ele mais do que desejamos a facilidade, o poder e o sucesso.

Um líder que vive com essa humildade, com esse senso de si mesmo como um pecador totalmente amado, cultivará relações diferentes. Eles se perceberão em uma dimensão mais justa com sua equipe, sua organização e o propósito que serve. Os líderes inacianos verão o poder de forma diferente, lidando com cuidado, mas não evitando o poder (o Papa Francisco é um bom exemplo disso [3]).

A humildade enriquece a autenticidade, porque tira a pressão de sermos maiores do que a vida mesma. Isso pode nos ajudar a assumir a responsabilidade da liderança de forma mais leve do que os líderes de cunho heroico, carismático e individualistas. Os líderes inacianos não são ameaçados pelo brilho dos outros, porque não fazem com que sua legitimidade seja melhor em tudo. Eles podem se cercar de equipes de pessoas que excedem suas próprias habilidades. Quando isso acontece, a humildade se reforça mutuamente entre aqueles que lideram.

Liberdade

A segunda característica distintiva surge do ensinamento sutil de Inácio sobre a falta de liberdade como consequência dos afetos desordenados, um ensinamento que envolve tanto dar como receber. Há uma "indiferença" (o que Joe Munitiz SJ descreve como o sentir-se "preparado para querer abandonar algo por amor de Deus" [4] - "preparado para desejar" parece-me uma formulação muito útil) equilibrada por uma "liberdade interior" - uma disposição aberta, desembaraçada e, portanto, capaz de receber tudo o que vier. Isso parece atraente, mas não é fácil. Muitos líderes têm vínculos desordenados com aspectos de seu trabalho ou missão que são em si bons. Por exemplo, você encontra líderes bem-intencionados, cujo impulso para uma visão maravilhosa e digna, ultrapassa os limites e joga seu time na exaustão? Os líderes inacianos precisam crescer no discernimento de suas próprias qualidades, seus próprios "apegos", e operar com um dinamismo que é menos treinado e mais parecido com o voar. Seu trabalho não é prejudicar sua organização ao longo de uma ação predeterminada para um destino claro, mas sim seguir um plano de voo, sintonizado constantemente no radar, fazendo micro ajustes, prontos para as mudanças e não ameaçado por estas.

Eu vejo a curiosidade dos primeiros jesuítas como fruto dessa liberdade. "Viver com um pé levantado" não é apenas a disponibilidade para a missão - mostra também uma mentalidade livre. Inácio e os primeiros jesuítas são amplamente citados como mestres da adaptação (talvez em parte para atender às nossas próprias necessidades de modelos de gerenciamento de mudanças). Às vezes, essa adaptação era simplesmente porque eles haviam errado na primeira vez. Mas certamente a abordagem e a atitude de Xavier na Índia mudaram no Japão. [5] A abordagem distinta de Matteo Ricci frente à inculturação na China também evoluiu através da sua experiência. [6]

Consolação

A terceira qualidade distintiva dos inacianos que quero destacar é a consolação. Os modelos de liderança secular pedem aos líderes que inspirem e motivem suas equipes. Não seria apropriado pedir a eles alegria. Uma narrativa que predomina atualmente é que vivemos em um mundo "VICA" - volátil, incerto, complexo e ambíguo - e o líder precisa de autenticidade, agilidade e resiliência. Tudo isso é verdade. Mas a narrativa cristã é de ressurreição. Além disso, nos Exercícios Espirituais, Inácio nos ensina formas de reconhecer a graça da consolação. Na nossa vida com Deus, na alegria da Quarta Semana dos Exercícios, buscamos e oramos por este presente. Os líderes inacianos imaginam, até mesmo esperam, que a alegria possa de alguma forma estar presente, a ponto de se tornar uma influência decisiva. Eles procuram o reino dos céus neste mundo VICA porque a ressurreição significa que o pecado não ganha. O Papa Francisco escolheu essa ênfase em seu discurso na 36ª Congregação Geral da Companhia de Jesus (GC36) no ano passado:

Nos Exercícios, Inácio pede a seus companheiros que contemplem "a tarefa da consolação" como algo específico do Cristo Ressuscitado... Que nunca nos roubem essa alegria, nem por meio do desânimo diante do grande mal no mundo e os maus entendidos entre aqueles que pretendem fazer o bem, nem deixemos que seja substituído por alegrias vãs... A alegria não é um "acréscimo" decorativo, mas um claro indicador de graça: indica que o amor é ativo, operacional e presente.

Os líderes inacianos devem ter esperança, propiciar estratégias com esperança e atender a "tarefa do consolo".

Senso de direção

A visão e um senso de direção é vital para liderar bem. Muitas empresas lutam para entender como conciliar estes dois elementos, mas eles geralmente só olham através da lente do que fazem e não do sentido do que fazem. [7] Porém, um líder formado na tradição inaciana o entende diretamente do "porquê", afirmado no "Princípio e Fundamento" dos Exercícios Espirituais: "A pessoa humana é criada para louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor e, ao fazê-lo, salvar sua alma". Isto, e as siglas que guiam a espiritualidade inaciana: AMDG (Ad Maiorem Dei Gloriam - "para a maior glória de Deus"), são linhas alentadoras, não correias. Por que você está liderando? Porque Deus é magnífico, e assim devemos focalizar tudo o que fazemos para a maior glória de Deus. Porque a pessoa humana existe para louvar, reverenciar e servir a Deus, e assim pode viver com alegria e confiança, porque sabemos que assim que estamos sendo salvos. Os líderes inacianos têm suas prioridades claras e retornam a elas com frequência. Seu olhar está em Deus, e o Princípio e a Fundamento ajuda a manter as prioridades bem firmes.

Discernimento

O discernimento - perceber "os movimentos sentidos no coração e refletidos ​​pela mente" [8] - está no coração da maneira inaciana de proceder. Eu veria isso como a qualidade inaciana por excelência, a que integra todas as outras.

Os líderes geralmente querem ser sábios, porém, nem todos buscam sabedoria nos mesmos lugares. Alguns se esforçam para se tornarem "líderes do pensamento". Outros aprimoram sua inteligência e habilidades críticas. Outros constantemente pesquisam e se mantêm atualizados em teorias de liderança de ponta. Os líderes inacianos procuram discernir. O artigo de James Hanvey sobre a liderança do Papa Francisco diz assim:

O discernimento é uma busca agraciada - quase em um sentido estético - dos movimentos da ação salvífica de Deus presentes em todas as nossas dinâmicas relacionais: formais e informais, pessoais e institucionais, onde quer que nossa ação passiva, receptiva e ativa esteja em jogo. A liberdade é a nossa obediência à "força gravitacional" e ao chamado da graça de Deus no trabalho... É uma sabedoria operacional que vem de saber a quem pertencemos, de quem nosso coração realmente se fia. Ele nos pede que estejamos atentos ao movimento do Espírito, tanto no mundo como em nós mesmos, especialmente para ficarmos alerta ao que nos faz surdos ou insensíveis. [9]

Uma abordagem inaciana para a boa tomada de decisões na liderança envolve mais do que calcular os benefícios e as perdas decorrentes de diferentes caminhos a seguir (uma das coisas que o jargão inaciano às vezes chama de discernimento). O discernimento envolve um compromisso de ouvir atentamente as diferentes motivações no trabalho e na organização, a ponto de algumas decisões não serem, em última análise, baseadas em resultados projetados, mas sim na sensação de estarmos em um caminho certo, coerente com nosso senso de quem está perante Deus.

Os líderes inacianos rezam, refletem e discernem em suas vidas pessoais de uma maneira que naturalmente influencia a cultura do seu local de trabalho. Uma organização exigente ouvirá sua própria experiência de forma diferente. A qualidade da audição aumentará, como um tipo de sintonia divina com Deus no rádio. As relações entre as equipes enriquecerão os processos de tomada de decisão.

O discernimento em comum é uma prioridade para toda a Companhia de Jesus que foi ressaltado na CG36, então os próximos anos serão um terreno rico de experimentação em ambientes crescentes, em locais de trabalho inacianos e em comunidades jesuítas.

Estas cinco caraterísticas não se manifestam em um estilo de liderança comum definido, mas sim em algumas aspirações incomuns e compartilhadas. As habilidades pessoais, interpessoais e organizacionais necessárias para cada bom líder são matizadas e enriquecidas por essas qualidades inacianas. Consolação, liberdade, um senso claro de direção, humildade e discernimento, fazem que algumas das habilidades de liderança sejam mais fáceis de sustentar. Eles atuam como giros da bússola. E se o trabalho é, em última instância, de Deus, o sentido de responsabilidade do líder pode fazer uma mudança profunda, libertadora e alegre.

Tudo isso também levanta questões interessantes para o futuro. Como leiga, estou intrigada com as maneiras pelas quais a liderança é diferente para um jesuíta e um leigo liderando um trabalho jesuíta. Os últimos não são chamados a ser proto-jesuítas: as responsabilidades são diferentes, e eu suspeito que o carisma é distinto também. Perguntas como essas confrontam aqueles que projetam futuros cursos de liderança inaciana e exigem uma colaboração profunda e frutífera entre jesuítas e leigos que lideram com situações reais e difíceis. O desafio não é reduzir a liderança inaciana a uma teoria ordenada com ferramentas e práticas predefinidas. É uma disposição da mente, do coração e da vontade. E acredito que é uma maneira distintiva de encarnar o evangelho ao serviço da necessidade mundial de uma verdadeira liderança.

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[1] Philip Endean, “Sobre a Pobreza com Cristo Pobre”, The Way 47 / 1-2 (Jan / Abril de 2008), 47-66. http://www.theway.org.uk/back/4712Endean.pdf

[2] Parágrafo 167 dos Exercícios Espirituais. O artigo de Philip Endean SJ sobre o terceiro grau de humildade (ibid.) É muito útil aqui.

[3] O artigo de James Hanvey SJ sobre o Papa Francisco ressaltou esta humildade em ação desde o primeiro dia de seu papado. (Veja James Hanvey, "Porque você me dá esperança", Thinking Faith, 30 de abril de 2013: https://www.thinkingfaith.org/articles/20130430_1.htm)

[4] Joseph Munitiz SJ (trans), São Ignácio de Loyola: Escritos pessoais (Penguin, 1996), glossário.

[5] São Francisco Xavier, "Carta do Japão à Sociedade de Jesus na Europa" (1552) http://sourcebooks.fordham.edu/halsall/mod/1552xavier4.asp

[6] Nicolas Standaert, “Matteo Ricci: em forma de chinês”, Thinking Faith, 21 de maio de 2010: https://www.thinkingfaith.org/articles/20100521_1.htm

[7] A conversa TED de "SINGING FROM WHY" de Simon Sinek é uma das mais bem sucedidas (e indiscutivelmente influentes) de todos os tempos, com cerca de 34 milhões de visualizações https://www.ted.com/talks/simon_sinek_how_great_leaders_inspire_action

[8] Joseph Munitiz SJ, op. cit.

[9] James Hanvey SJ, op. cit.


Thinking Faith -Tradução: Ramón Lara

*Sarah Broscombe é uma treinadora freelancer, coach e guia de retiros. Ela mora em Yorkshire e trabalha em todo o Reino Unido e no exterior. Sua conexão com os jesuítas começou em 2002, quando ela trabalhou na comunidade de voluntários jesuítas e, em seguida, participante do projeto de desenvolvimento comunitário na Guiana e no trabalho de espiritualidade com o Loyola Hall e Saint Beuno. Ela atualmente está coordenando uma equipe que desenvolve um novo Programa de Liderança inaciana com o objetivo de começa-lo em julho de 2018.

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