domingo, 15 de outubro de 2017

A Igreja que combate o narcisismo contemporâneo

domtotal.com
Por Eugenio Scalfari
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Vincenzo Paglia, sacerdote, arcebispo e patrono por muitos anos e ainda hoje da comunidade católica de Santo Egídio, escreveu um novo livro com o título Il crollo del Noi (O colapso do Nós), publicado pela Laterza. Aborda uma série de argumentos, e cita um impressionante número de Papas e escritores de culturas e nacionalidades variadas, que servem para ilustrar os temas de que seu livro trata. É muito eficaz este método de escrita e os personagens mencionados lhe oferecem a possibilidade de polemizar ou concordar com eles e, de qualquer forma, contar a vida dos indivíduos, das famílias, das cidades, dos jovens, dos pobres e das culturas. E, principalmente, chegar a uma conclusão que é o núcleo de seu pensamento: a fraternidade, a paz, o amor e o novo humanismo que, em sua opinião, permitem à humanidade desenvolver uma cultura adequada aos tempos sem perder, aliás, permitindo a fraternidade entre crentes e não crentes que, de qualquer forma, compartilham e reforçam valores comuns. ‘Nós’ não é apenas uma palavra e o título de um livro: é um programa que apresenta muitos desafios para ser realizado, mas cujo valor é indiscutível. Contrapõe-se a outra palavra e outra força de valor: o 'eu’. A diferença entre ‘eu’ e ‘nós’ é primordial e, acima de tudo, consiste no fato de que o 'eu' é a base que distingue nossa espécie de todos os outros seres vivos, enquanto o ‘nós’ é justamente o 'eu’ que deve permitir que se realize esta passagem e conduzir o ‘nós’ para a mesma altura específica do 'eu’: duas figuras que se equivalem, mesmo que uma crie a outra.

Vou citar aqui o núcleo do pensamento do autor, que ele expressa nas páginas iniciais do livro: "Se por um lado é verdade que o homem do século XXI pode sentir-se mais livre, hoje certamente sente-se mais sozinho, curvado sob o peso de uma carga invisível e ainda assim extremamente pesada. Existe o 'eu’, repleto de sua presente competência. Sente-se o ‘único’. Tudo deve se basear nele.

O indivíduo é forçado a ter que sonhar, decidir, querer e reinventar" e encerra citando as palavras de um colega do mais alto nível intelectual que agora, infelizmente, já se foi: Carlo Maria Martini. Essas palavras foram proferidas por ele em 2003. Aqui estão:

"Vocês, humanistas modernos, contrários à transcendência das coisas supremas, vocês precisam reconhecer o nosso novo humanismo. Mesmo nós, nós acima de tudo, somos cultores do homem. Queremos favorecer uma visão e um compromisso comum entre crentes e não-crentes para enfrentarmos juntos os grandes desafios do presente".

Lembremo-nos que Martini foi o grande defensor do Papa Francisco. Eles compartilhavam a mesma forma de pensar e deste pensamento o Papa Francisco fez o principal compromisso do seu pontificado, levando adiante o encontro da Igreja com a modernidade. Permito-me aqui recordar o que falamos o Papa e eu sobre esta questão em um de nossos encontros durante os quais nos tornamos amigos. Estávamos considerando seu compromisso com uma igreja moderna que soubesse se entender com a modernidade laica. "Santidade – eu disse - tenha em mente que nós não acreditamos na verdade absoluta. Somos relativistas, como a cultura iluminista nos ensinou. Vocês católicos, ao contrário, acreditam no Absoluto". "É verdade - respondeu o Papa - nós crentes acreditamos todos no Absoluto no que diz respeito à verdade que emana de Deus. O nosso Deus único para nós representa o Absoluto”.

Naquele ponto da nossa conversa, perguntei-lhe como era possível um encontro com a modernidade, e sua resposta foi esta: "Nós crentes, e, principalmente nós presbíteros e nós bispos acreditamos no Absoluto, mas cada um à sua maneira, porque cada um tem sua própria cabeça e o próprio pensamento. Portanto, a nossa verdade absoluta, compartilhada por todos nós, no entanto, é diferente de pessoa para pessoa. Não evitamos, de fato, discussões no caso das quais os nossos diferentes pensamentos se confrontam. Portanto, existe uma espécie de relativismo também entre nós". Esta foi a resposta do Papa Francisco que, naturalmente, é o mais citado no livro de Paglia.

Acredito que neste ponto preciso listar os temas que o autor aborda em seu livro. São os seguintes: os pobres; as desigualdades; um; tu; nós; Papa Francisco; relativismo e Absoluto; modernidade; Deus Único; sociedade; Jesus e o Samaritano; a família; os jovens, Deus e Amor; a fraternidade; o número das contradições; o Humanismo; a proximidade; a palavra. Estes temas constantemente entrelaçam-se uns com os outros e isso é o mérito do livro. Por exemplo, a liberdade: é uma condição necessária para todos e para tudo, mas, ao mesmo tempo, realiza o triunfo da individualidade. Paglia escreveu: "O 'eu’ permaneceu sozinho, aliás, o 'Único’. O individualismo, o egoísmo, a autorrealização e a aspiração por uma felicidade privada remetem ao antigo mito de Narciso. O indivíduo narcisista agora já roubou a cena".

Este é um problema que se relaciona diretamente com aquele dos pobres. O narcisismo, de fato, impede a consideração do próximo, exceto quando o próximo fica encantado por esse Narciso e coloca-se ao seu serviço. Muitas vezes esta que é a "servidão voluntária" descrita pelo amigo de Montaigne, Etienne de La Boétie, produz regimes autoritários ou até mesmo ditaduras tirânicas. A história antiga e a moderna, infelizmente, é pontilhada de casos desse tipo: liberdade, narcisismo, uso do povo soberano como precioso instrumento que transforma aquela soberania em servidão voluntária conquistada pela demagogia com o resultado da ditadura. Esses são mecanismos que funcionaram com muita frequência causando não só egoísmo, mas também ódio e guerras.

O desejo de poder torna-se a marca registrada da história. O remédio seria o de manter unidos os dois grandes valores da Liberdade e Justiça, Liberdade e Igualdade. Lembram-se dos valores iniciais da Revolução Francesa de 1789? Lembram-se da bandeira tricolor e o significado daquele símbolo da Europa liberal: 'Liberté, Egalité, Fraternité'?. E lembram-se do lema dos irmãos Rosselli e do Partido da Ação? Dizia: "Justiça e Liberdade". Não por acaso foram mortos pelos fascistas.

A este respeito Paglia cita uma passagem de Aristóteles que é altamente significativa: "Aquele que não pode ser parte de uma comunidade ou que não precisa de nada, bastando a si mesmo, não é parte de uma cidade, mas é um animal ou um Deus". No livro de que estamos falando, o autor dedica muitas páginas à Bíblia do Velho Testamento e, especialmente, à parte chamada "Gênesis", que narra a criação e a expulsão de Adão e Eva do Paraíso por terem comido o fruto da árvore proibida, depois de dar ouvidos à serpente, que outra não é senão o Demônio.

Mas aqui surge um problema nada fácil de ser resolvido: a quem devemos a existência do Demônio? É um poder contrário a Deus, ou é o próprio Deus com uma veste deliberadamente oposta à natural? A religião católico-cristã obviamente faz distinção entre o bem e o mal, mas não aborda a origem do mal: foi o próprio Deus que o criou quando reconheceu às suas criaturas humanas o direito ao livre arbítrio?

O Papa Francisco, precedido nisso por João XXIII e Paulo VI, mas com uma força revolucionária em relação à teologia eclesial, aboliu os lugares aonde, após a morte, as almas deveriam ir: Inferno, Purgatório, Paraíso. Dois mil anos de teologia se basearam nesse tipo de Além que inclusive os Evangelhos confirmam. Com um cuidado, porém - que em parte é devido às cartas de São Paulo (aos Coríntios e aos Romanos) e em parte, inclusive maior, a Agostinho de Hipona - ao tema da Graça. Todas as almas são dotadas da Graça e, portanto, nascem perfeitamente inocentes, e assim continuam a não ser que enveredem pelo caminho do mal. Se tiverem consciência disso e não se arrependerem mesmo no momento da morte, serão condenadas.

O Papa Francisco - repito - aboliu os locais de eterna morada no Além das almas. A tese que ele defende é que as almas dominadas pelo mal e que não se arrependem deixarão de existir, enquanto aquelas que forem resgatadas do mal serão acolhidas no êxtase da contemplação de Deus. Esta é a tese de Francisco e também de Paglia.

Aqui vou inserir uma observação minha: o Juízo Final que está presente na tradição da Igreja, torna-se sem sentido. As almas que escolheram e praticaram o mal desaparecem e o Juízo Final permanece como um simples pretexto que deu origem a belíssimas obras na história da arte. Nada mais que isso. É claro que a teologia sustenta que uma centelha divina está presente em todas as espécies, ou seja, o Criador está nas almas de todos os seres vivos e mais do que nunca na espécie humana criada "à sua imagem e semelhança".

Esta tese que até o momento não foi posta em discussão é a que Spinoza usou, alegando precisamente que Deus estava presente em todas as criaturas e não existia a não ser dessa forma. A tese de Spinoza, portanto, transformou a transcendência em imanência e foi por isso que ele foi excomungado pela comunidade judaica e as suas obras foram colocadas no índex da Igreja.

Recentemente falei sobre esse assunto com o papa Francisco, perguntando-lhe se a condenação para as suas teses poderia ser revogada. Mas a sua resposta foi negativa: a transcendência de Deus não pode ser colocada em discussão. Sem a transcendência o Ser divino deixaria de existir se e quando a nossa espécie desaparecesse da Terra. Se o Deus fosse imanente também ele iria desaparecer. Portanto aquela excomunhão não pode ser abolida. Para um não crente este argumento não é aceitável, mesmo que as razões que afirmam a transcendência sejam compreensíveis.

Vou terminar esta resenha com uma frase que o autor escreve ilustrando com a mesma o núcleo de seu pensamento: "Os crentes em Deus (religiosos) e os crentes no homem (humanistas) no encontro com os pobres reencontram uma preciosa aliança. Eu diria que é de onde deveríamos recomeçar para tecer e cerzir as lacerações na nossa sociedade. O envolvimento para o resgate dos pobres demarca uma linha de mudança edificante. Para os cristãos, este humanismo é fundamental: quem encontra os pobres encontra o próprio Deus".

Acrescento pelo meu lado: para os não crentes é um encontro com os valores laicos de liberdade, de igualdade e da fraternidade. Obrigado, querido Vincenzo, pelo livro que você escreveu.


Repubblica, 09-10-2017

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