terça-feira, 24 de outubro de 2017

"Bruta flor do querer"

domtotal.com
O que percebemos é que a força bruta da bruta flor do querer floresceu na ficção com traços radicais de semelhança com as realidades.
Assuntos como a transexualidade, a violência, o tráfico de drogas, o vício por jogos de azar, a agiotagem, a segurança pública, etc., eram cotidianamente trazidos à tona e logo se tornaram pauta nas conversas e reuniões de grupos.
Assuntos como a transexualidade, a violência, o tráfico de drogas, o vício por jogos de azar, a agiotagem, a segurança pública, etc., eram cotidianamente trazidos à tona e logo se tornaram pauta nas conversas e reuniões de grupos. (Divulgação)
Por Tânia da Silva Mayer

Assim como eu, milhares de brasileiros acompanharam o desfecho de “A força do querer”, novela do horário nobre da Rede Globo, na última sexta-feira. A história que prendeu os expectadores até o último capítulo mobilizou a discussão de temas cruciais para a sociedade brasileira. Assuntos como a transexualidade, a violência, o tráfico de drogas, o vício por jogos de azar, a agiotagem, a segurança pública, etc., eram cotidianamente trazidos à tona e logo se tornaram pauta nas conversas e reuniões de grupos. A abordagem de tais temas aproximou o público e sua vida da narrativa de Glória Perez, que mais uma vez provocou o debate sobre temas fronteiriços, mas desde a perspectiva do querer, que também pode ser entendido por vontade.

Essa dinâmica era recordada ritualmente na abertura da novela, marcada pela canção “O quereres”, de Caetano Veloso. Mas foi o desenrolar da trama que permitiu compreender como o querer mais íntimo de cada personagem compunha uma história que viria a dar em salvação ou perdição. Entendemos o querer como sinônimo de vontade, isto é, uma força impulsiva e decisória que nos motiva ou não para uma ação no mundo. Trata-se de uma “bruta flor”, conforme a canção, e isso revela um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que evoca singeleza, fragilidade, beleza e perfume, também é algo bruto, não trabalhado, sem lapidação. Claramente, não estamos abordando o querer e a vontade à luz dos estudos filosóficos ou psicológicos, mas a partir de um seu campo semântico que pode ser apreendido na novela em questão.

A personagem Bibi, interpretada por Juliana Paes, é extremamente inflamada e impulsiva. Ao primeiro sinal de amor, foi capaz de cometer crimes e loucuras para estar ao lado do marido. Adentrou o mundo do crime e se encantou por ele. Seu querer a fez mudar de vida, de estudante de direito passou a traficante de armas e drogas. Depois de sofrer decepções, arrependeu-se, confessou os crimes e foi presa. Precisamente, após ver frustrada a expectativa de um marido fiel e após ser presa, reconheceu que era urgente mudar de vida e refazer sua própria história. O querer de Bibi, podemos dizer, passou por uma conversão, reorientou-se, permitindo-a retomar a faculdade e ascender profissionalmente. De um estado de desequilíbrio profundo, ela alcançou uma vida mais plena, fruto do desejo de estar inteira. Nesse sentido, a vontade, “bruta flor do querer”, a redimiu, a salvou de um mundo no qual estava imersa em mazelas. Precisamente, o sofrimento a ajudou no processo de redenção do querer amar os outros e a si mesma.

Silvana é outra personagem, interpretada pela atriz Lilian Cabral, mãe e esposa que viu seus bens se diluírem em apostas fracassadas em jogos de azar. Após criar um mundo de mentiras ao redor de si e da família, negando sua obsessão incontrolável pelos jogos, viu o agiota a quem devia fazer refém a própria filha sob a mira de uma arma de fogo. Cegada por um desejo vicioso, escondeu de si mesma o vício, negando-o aos outros. Só foi capaz de reconhecer-se doente e recorrer ao tratamento quando a filha, seu maior bem, ser-lhe-ia tomada como paga de uma dívida contraída em jogo. Novamente, uma situação limítrofe opera uma in-esperada reorientação do desejo. Nota-se que a brutalidade da força impulsiva e decisória do querer pode conduzir à morte, de maneira que é preciso lapidá-la, a fim de que, trabalhada, desponte-se como força para a superação de dificuldades e novo impulso para a vida.

Uma personagem que marcou a trama de maneira radicalíssima é a do jovem Ivan, interpretado por Carol Duarte. Nascido biologicamente fêmea foi criado pelos pais como Ivana. Os espectadores sofremos e acompanhamos o drama existencial das transexualidades provocado pela inadequação entre o sexo biológico e a identidade de gênero. A questão, ainda um tabu em nossa sociedade brasileira campeã em assassinatos de pessoas trans, penetrou os lares e se colou na roda diminuindo o anonimato e a invisibilidade social aos quais essas pessoas estão submetidas. Acompanhamos os sofrimentos, a descoberta de si e a luta para adequação do gênero de Ivan, bem como os percalços da lei, da política e da aceitabilidade familiar e social.

O desejo de Ivan era poder transitar num corpo em que se reconhecesse. O uso irresponsável de medicamentos, ajustado ao desamparo familiar, incorreram em prejuízos para a personagem, que sofreu a violência na pele, fruto do preconceito de gente incapaz de conviver com diferenças.  A força do querer de Ivan, aliada aos recursos financeiros da família, contribuíram para a sua transição. “Eu sempre quis assim, mãe”, retoma a personagem quando o resultado da cirurgia de retirada das mamas é apresentado aos pais. Como se pode ver, o corpo esperado, sinônimo de uma vida mais feliz para a Ivan, só se tornou possível pela decisão instintiva do querer mudar para ser quem se é. Fora do desejo de saber ser quem se é, o eu de Ivan não teria sido descoberto.

O que percebemos é que a força bruta da bruta flor do querer floresceu na ficção com traços radicais de semelhança com as realidades. Pensando antropologicamente, compreendemos que tal força merece ser trabalhada, lapidada, a fim de que não nos condene à infelicidade e à perdição. Precisamente, a bruta flor do querer de que necessitamos é aquela que favorece a realização ética do ser humano e a sua vida plena. Nesse sentido é que se deve pensar teologicamente a conformação do querer humano ao querer divino, este sempre expressão de salvação, graça e alegria e, por isso mesmo, soberano e não sujeitado ao fracasso.

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