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Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão: nisso consiste o legítimo sacerdócio que Jesus, Helley e tantos outros continuam nos ensinando.
A professora Helley Abreu Batista, que ofereceu o corpo em chamas ao salvamento da vida de seus pequeninos alunos, é sacerdotisa à maneira de Jesus. (Reprodução/Facebook)
Por Tânia da Silva Mayer*
Talvez o título deste artigo não seja fiel ao que manifestaremos ao longo do texto. Certamente a primeira imagem que nos assalta é a de um padre paramentado exercendo as suas funções sacras, isso para o caso de o leitor ser católico. Comumente, na Igreja chama-se de sacerdote o ministro ordenado. Desconsidera-se, contudo, que toda pessoa batizada participa, pela ação sacramental, do sacerdócio de Jesus Cristo. Mas para avançarmos na compreensão de que todos os homens e mulheres batizados são invitados a tomar parte no único sacerdócio de Jesus, à maneira como ele nos demonstra por seus gestos e palavras, é imprescindível considerar algumas questões acerca do tema e do termo.
As culturas orientais antigas apresentaram fortes ligações com a figura do sacerdote. Normalmente associados ao sexo masculino, também se verificou a presença de algumas mulheres sacerdotisas. O cargo ou a função era conferido de maneira hereditária, fomentando assim um grupo social subdividido em diversas classes. Nota-se que os sacerdotes eram pessoas de poder e com prestígio na cultura em que estavam. Em Israel, essa realidade não é diferente. Os sacerdotes exerciam influência junto aos governos, mesmo que indiretamente, mas sua atividade está relacionada ao Templo e a vida litúrgica ali desenvolvida. Em períodos mais antigos, constatou-se a existência de três funções sacerdotais, a saber, a de proferir oráculos, a de instruir na lei e a de oferecer sacrifícios. No entanto, esta permaneceu ao longo das épocas, fortalecendo a ideia do sacerdote como um mediador entre o ser humano e Deus, o único que pode entrar na esfera do divino para oferecer os sacrifícios dos homens e alcançar a benevolência divina.
O Novo Testamento parece deixar num segundo plano a função dos sacerdotes. Muitas vezes eles surgem como contraponto à ação de Jesus, este sempre à frente da própria Lei mosaica. Noutra vezes, a classe sacerdotal é criticada por Jesus, por causa do apego às rubricas e da pouca ou inexistente misericórdia (cf. Lc 10,31-32). Por outro lado, os sacerdotes, enquanto grupo social e religioso, têm considerável atuação no processo espúrio de condenação e crucificação de Jesus. Nem a si e nem a seus discípulos e discípulas Jesus atribuiu o título de sacerdote, logicamente, porque não era judeu da tribo de Levi e sua ação não estava restrita ao oferecimento de sacrifícios no Templo, mas empenhada na promoção e libertação do ser humano de tudo aquilo que escraviza e mata.
Após a Morte e Ressurreição, a comunidade cristã compreendeu a si mesma como povo sacerdotal (cf. 1Pd2,5), chamada a oferecer um sacrifício perfeito ao Senhor. Hebreus desenvolve o tema do sacerdócio de Jesus e à luz dessa homilia se pode compreender melhor o sacerdócio dos cristãos e das cristãs. O autor remonta o sacerdócio de Jesus ao modo de Melquisedec, personagem sem origem e nem genealogia, alguém de suma importância. Nessa esteira a entrega da vida de Jesus na cruz, por amor aos seus, é o sacrifício definitivo e pleno que nos reconcilia com Deus e nos introduz na comunhão trinitária. Isso tudo é realizado por Jesus, sacerdote, altar e vítima, cujo sangue foi derramado por amor de muitos. Nesse sentido, Jesus só pode ser compreendido como sacerdote à luz da postura de quem dá a vida para que haja mais vida. Precisamente, é a morte desse homem que nos abre o sentido de uma vida digna, abundante e eterna. E é na lógica da entrega e doação da vida que se constrói uma sadia consciência do sacerdócio cristão, seja ele ordenado ou leigo.
Nessa última semana o tema do sacerdócio cristão estampou as capas dos jornais sob o drama de uma catástrofe nas terras mineiras. Os noticiários, ao mesmo tempo em que nos deixavam perplexos, também provocavam uma profunda e dolorosa reflexão a cerca da existência dos sacerdotes e sacerdotisas que doam a vida para proveito da vida. E na semana que antecede as comemorações pelo dia dos professores e professoras, cuja profissão é ingrata, desrespeitada e subjugada tantas vezes, somos dramaticamente surpreendidos pelo exercício sacerdotal da professora Helley Abreu Batista, que ofereceu o corpo em chamas ao salvamento da vida de seus pequeninos alunos. Ela não é uma mera heroína a figurar nosso imaginário, ela é sacerdotisa à maneira de Jesus, se entregou e se consumiu para que os outros tivessem vida em um mundo em que o sacrifício e a luta pela vida se dão em contextos inesperados provocados pelos loucos que nossas sociedades produziram. Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão: nisso consiste o legítimo sacerdócio que Jesus, Helley e tantos outros continuam nos ensinando.
*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com.
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