segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Um Deus que dança

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Missionário redentorista partilha seu olhar sobre a experiência do povo africano com a dança como celebração da vida, o que inclui mesmo a vivência da Eucaristia.
O povo Africano guia seu cotidiano a partir de uma coreografia que dá ritmo a vida.
O povo Africano guia seu cotidiano a partir de uma coreografia que dá ritmo a vida. (Reprodução/ Missionários da Consolata)
Por Jean Carlos,CSsR*

A dança é essencialmente a harmonia da vida, a partir dela o caos transforma-se em ordem, aquilo que até então era oculto torna-se desvelado aos olhos de quem capta cada expressão do corpo. É na dança que se celebra a vida e a morte, a alegria e a tristeza, o bem e o mal. Longe de um dualismo grego, o povo Moçambicano, ou melhor, o povo Africano guia seu cotidiano a partir de uma coreografia que dá ritmo a vida; desde o privado ao público, do profano ao sagrado.

Desde quando cheguei em Moçambique percebi o ritmo ou, como dizemos no Brasil, o “gingado” que permeia todo o povo, das crianças aos mais velhos. Não obstante, na liturgia percebi que seguem a mesma dinâmica dançante, do batismo aos velórios, e não só com os católicos, mas com todas as comunidades religiosas de nossa pequena vila de Furancungo, sejam cristãs ou não.

Nossas celebrações litúrgicas, mais precisamente as celebrações eucarísticas, que duram em média duas horas e meia, são permeadas por diversos ritmos que expressam os sentimentos pessoais/comunitários em sintonia com o ato celebrado. Nesses atos é singularmente percebido o dado antropológico que permeia todas as religiões; a dança é a expressão mais transcendente daquilo que é pura imanência; o corpo.

A dança dentro da fé judaico-cristã é a expressão de maior louvor e agradecimento da intervenção de Deus na história do homem. Diversas passagens bíblicas expressam esse louvor; o cântico de Miriã (cf. Ex 15, 20-21), o vislumbre profético dos dias do Senhor de Jeremias (cf. Jr 31,13) e também dentro do culto celebrativo junto a Arca de Deus (cf 2Sm 6, 14-15.20-23). E ante a dor e o sofrimento, o pecado e a desolação, cessam-se tais atos (cf. Lm 5,15-16). E dentro do Novo Testamento, Jesus se utiliza da festiva celebração do retorno do filho jovem (cf. 15, 25.32) para expressar a alegria do retorno daquele que se perdeu.

Desta forma não nos é alheio o modo celebrativo de nossa pequena vila de Furancungo em Moçambique. Desde o canto de entrada ao canto final, tudo é permeado pelo estrondoso som de um coral de mais de 40 vozes e batuques. Dois momentos são nitidamente destacados; o ato penitencial que expressa um ritmo de tristeza e vergonha diante do pecado cometido, mas que ao mesmo tempo confessa a misericórdia de Deus e o Ofertório no qual apresentam os dons da terra de modo festivo e alegre, uma alegria quem dá não o que sobra, mas aquilo que possui, e em cada deposito diante do altar a palavra ‘Zikomo’ que quer dizer ‘Obrigado’ e uma tímida genuflexão. 

Em uma entrevista de 2007, disponível no youtube, o Card. Francis Arinze se pronuncia acerca da ‘dança litúrgica’ e expõem de maneira clara o seu posicionamento contrário sobre o tema e compreendemos claramente seu posicionamento em defesa da ortodoxia, mas não podemos nos esquecer que a dança é constitutiva das religiões, e certamente um caminho que nos leva a uma maior comunhão, já que sempre buscamos aquilo que nos une.

Finalmente, lembrando o saudoso Pe. Ulpiano, S.J que sempre indagava seus alunos a ver e adentrar a pericorese trinitária, hoje mais claro como nunca, é perceptível o convite a juntar-se nessa dança da comunidade-comunhão, com Ele, com o próximo, enfim, com o mundo.

*Fr. Jean Carlos,CSsR é missionário redentorista na vila de Furancungo, Tete, Moçambique.

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