quarta-feira, 29 de novembro de 2017

A luta pela terra deixa nua a violência do poder

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A experiência humana de luta pela terra se torna mediação necessária entre o ser social e a consciência social que influencia na atuação do sujeito Sem Terra.
A experiência da luta pela terra marca indelevelmente quem dela participa e suscita o ímpeto de contá-la na busca de caminhos emancipatórios.
A experiência da luta pela terra marca indelevelmente quem dela participa e suscita o ímpeto de contá-la na busca de caminhos emancipatórios. (Reprodução)
Por Gilvander Moreira

A opressão do latifúndio, dos latifundiários e do capitalismo tem levado, de alguma forma, a um emudecimento dos sem-terra e ao desejo de libertar-se da experiência de ser expropriado e ignorado nos seus direitos; tem levado à banalização da existência humana, à perda de valores. Entretanto, na contramão da ordem estabelecida, no Brasil, a experiência da luta pela terra marca indelevelmente quem dela participa e suscita o ímpeto de contá-la na busca de caminhos emancipatórios. Isso constatamos na nossa pesquisa de doutorado sobre Luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana, na FAE/UFMG, defendida em maio de 2017. Para que o tempo volte a ser qualitativo e gere experiências com significações e valores, urge resgatarmos a memória de lutas que subvertem a banalização do sentido da existência humana. A experiência humana de luta pela terra se torna mediação necessária entre o ser social e a consciência social que influencia na atuação do sujeito social Sem Terra. Concordamos com Thompson, quando ele afirma que “é a experiência (muitas vezes a experiência de classe) que dá cor à cultura, aos valores e ao pensamento: é por meio da experiência que o modo de produção exerce uma pressão determinante sobre outras atividades...” (THOMPSON, 1981, p. 112).

A experiência de ser camponês Sem Terra, expulsando o medo e participando de uma ocupação de terra, resistindo na terra e participando de todas as lutas inerentes à luta pela terra, é algo que marca indelevelmente a vida de um camponês. Mesmo que este camponês deixe de ser um militante do MST, jamais será a mesma pessoa de antes. Há nessa experiência algo de emancipatório que contribui para a superação do capitalismo, uma vez que não podemos esquecer o que Walter Benjamim afirmou: “a experiência de nossa geração: o capitalismo não morrerá de morte natural” (BENJAMIN, 2006, p. 708).

A Constituição de 1824, do Brasil imperial, determinava acerca do Direito de Propriedade em seu artigo 179, inciso XXII, nos seguintes termos, com grafia da língua portuguesa da época:

“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação” (PORTO, 1985, p. 37).

Na prática muitas decisões do poder judiciário no Brasil relativos aos conflitos agrários e urbanos -pedidos de reintegração de posse - são julgados como se estivéssemos ainda regidos pela Constituição de 1824 do Brasil imperial, a que prescrevia direito absoluto de propriedade. Esquecem geralmente os magistrados que a Constituição de 1988 prescreve que a Propriedade tem que cumprir sua função social, coluna mestra da propriedade. Ou seja, se a propriedade não cumpre sua função social ela deixa de existir juridicamente.

Após as revoluções do século XVIII – a francesa e a dos Estados Unidos -, acolhendo os interesses liberais da burguesia nascente na Europa, a Constituição do Brasil, de 1824, garantiu juridicamente o interesse individual absoluto do proprietário, em detrimento dos direitos sociais da coletividade. Ao proprietário ficou assegurada a plena liberdade de ‘uso, gozo e disposição do proprietário’[1], sem função social da propriedade da terra e, com uma única exceção: a utilização do seu imóvel pelo Estado, mediante indenização prévia. Esse conceito de propriedade plena ficou conhecido como “absolutização” do Direito de Propriedade. Afirmava-se, assim, a individualidade de cada proprietário e o direito civil de propriedade inviolável e não mais o centralismo monárquico. O caput do artigo 179 da Constituição de 1824 garantia a propriedade como fundamento dos direitos civis dos cidadãos brasileiros, ao expressar, na grafia da língua portuguesa da época: “A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio”.

Aqui cabe recordar a função dupla do poder como violência na instituição do Direito, conforme nos ensina Walter Benjamin. “A função do poder como violência na instituição do Direito é dupla, na medida em que essa instituição se propõe ser aquilo que se institui como Direito, como seu fim, usando a violência como meio; mas, por outro lado, no momento da aplicação dos fins em vista como Direito, a violência não abdica, mas transforma-se, num sentido rigoroso e imediato, em poder instituinte do Direito, na medida em que estabelece como Direito, em nome do poder político, não um fim livre e independente da violência, mas um fim necessária e intimamente a ela ligado” (BENJAMIN, 2012, p. 77).

Ao analisar a evolução histórica do Direito de Propriedade nas constituições brasileiras, Figueira comenta sobre a Constituição de 1824: “A Constituição do Império garantiu a propriedade de modo absoluto e aos moldes das Constituições Francesa e Portuguesa” (FIGUEIRA, 2007, p. 29). E, os Sem Terra, na luta pela terra, exigem que a Constituição de 1988 seja respeitada pelo poder judiciário e não a prescrita Constituição de 1824.

[1]Conceitos do Direito Romano sobre a propriedade: jus utendi, fruendi et abutendi (Direito de usar, fruir e abusar).

Referências.

BENJAMIN, Walter. BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

____. Passagens. Organização da edição brasileira Willi Bolle. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

FIGUEIRA, Lúcia Valle. Função social da propriedade urbana e o plano diretor. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

PORTO, Walter Costa. A Constituição de 1824. Brasília: Institutos dos Advogados do Brasil, 1985.

THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981


Gilvander Moreira
é frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Ocupações Urbanas; professor de “Direitos Humanos e Movimentos Populares” em curso de pós-graduação do IDH, em Belo Horizonte, MG, autor de livros e artigos.

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