quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Luteranos e Católicos: contra a loucura dos príncipes, a sabedoria do Evangelho

domtotal.com
Décadas de diálogo ecumênico permitem que católicos e luteranos comemorem juntos o aniversário de quinhentos anos da Reforma (1517-2017).
Fiéis celebram o aniversário de 500 anos da Reforma Protestante, em Wittenberg, na Alemanha.
Fiéis celebram o aniversário de 500 anos da Reforma Protestante, em Wittenberg, na Alemanha. (John Macdougall/ AFP)
Por Élio Gasda*

Ecclesia semper reformanda est! Décadas de diálogo ecumênico permitem que católicos e luteranos comemorem juntos o aniversário de quinhentos anos da Reforma (1517-2017). O ecumenismo do Papa Francisco motiva uma leitura positiva das intenções de Martinho Lutero. Os escritos deste cristão convicto têm intuições inspiradoras para a Doutrina Social da Igreja.

Lutero estremeceu as estruturas de poder do seu tempo. A justiça social, o sentido da política e o cuidado para com os mais pobres são temas urgentes em tempos sombrios de desigualdade social extrema e cleptocracia (governo de ladrões). O mercado religioso já tem mais de 500 anos. Diante da mercantilização da fé, sua noção de gratuidade da salvação é vigente. A salvação não está à venda. Deus não é um produto comercial.

Lutero denunciou a corrupção do poder exercido em benefício das autoridades. Em um texto de 1523, Da autoridade secular, Lutero se levanta indignado contra os abusos praticados pelos governantes: “Deus enlouqueceu os nossos príncipes. Desde o começo do mundo, príncipe sábio é coisa rara. Mais raro ainda é um príncipe honesto. Geralmente são os maiores tolos e os piores tratantes da terra. A maior indecência nos palácios é quando um príncipe se submete aos bajuladores. Quando um príncipe erra ou faz uma loucura, todo o povo sofre as consequências de sua loucura”. A característica de um bom governante é manter o bom senso, não se deixar manipular. Mas quando ele perde a razão, é preciso resistir. “Nenhuma pessoa deve agir contra o direito, antes, deve obedecer mais a Deus que quer justiça, do que aos homens (cf. Atos 5.29)”. Os cristãos não devem permitir que qualquer tipo de poder, seja religioso, político ou econômico, manipule sua consciência. A liberdade é a principal dimensão da fé no Evangelho. A autoridade merece respeito somente naquilo que lhe cabe. Jamais pode dominar a consciência das pessoas. A única coisa que não oferece perigo é submeter-se à autoridade estabelecida.

Após a leitura do livro Aos pastores, para que preguem contra a usura, Karl Marx considerou Lutero o mais antigo economista político alemão. A política está ligada ao âmbito da economia doméstica. Isso significa que a política deve ter por objetivo a justiça socioeconômica. A corrupção consiste em não administrar com justiça. Sua perversão desmascara a visão de um ídolo oculto que é, ao mesmo tempo, o próprio diabo. Uma economia corrompida corrompe a política. As duas são inseparáveis. Não se pode confiar aos economistas a administração do Estado.

A política precisa ser controlada para que atinja os seus fins sociais: justiça, paz e felicidade geral da nação. A característica de uma sociedade é a responsabilidade pela justiça social medida a partir do cuidado dos mais pobres. No texto sobre o Salmo 82, Lutero destaca que as autoridades são responsáveis por promover os direitos dos pobres, órfãos e viúvas.

Seu comentário ao Magnificat (1521) representa uma espiritualidade libertadora. Foi o Espírito Santo quem ensinou Maria, a pobre jovem mãe de Jesus, a cantar um hino tão político. Deus não age como os poderosos deste mundo, que desprezam os pobres. Quem clama a Deus para buscar seus próprios interesses não o ama de fato, pois usa o nome de Deus de forma egoísta. O verdadeiro fiel clama a Deus junto com os humilhados como Maria: “ninguém quer olhar para baixo. Lá tem pobreza, desonra, miséria, desgraça e angústia. Todos desviam o olhar e se afastam de pessoas nesta situação. Rejeitam e abandonam essa gente. Ninguém se lembra de lhes ajudar para que também sejam alguém. Mas Deus consegue ver as coisas dessa maneira, olhando para os de baixo, para a miséria” (O louvor de Maria: Magnificat).

31 de outubro de 1517: Lutero publicou na porta da igreja de Wittenberg 95 teses que condenavam a venda das indulgências. Algumas são inspiradoras para a Doutrina social da Igreja: deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgências possa ser comparada com as obras de misericórdia (42); deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências (43); através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre da pena (43); deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um pobre e o despreza para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus (45); deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse da corrupção dos pregadores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basílica de São Pedro a edificá-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas (50); disse São Lourenço: Os pobres são o tesouro da Igreja (59).

 31 de outubro de 2017. Disse Francisco: “Juntos podemos anunciar e manifestar, de forma concreta e com alegria, a misericórdia de Deus, defendendo a dignidade de cada pessoa. Sem este serviço no mundo, a fé cristã é incompleta”. Heinrich Bedford-Strohmo, bispo luterano presidente do Conselho da Igreja Evangélica Alemã, respondeu: “Irmão em Cristo, agradecemos a Deus pelo teu testemunho de amor e misericórdia, que, para nós, protestantes, também significa testemunho de Cristo”.

*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).

Nenhum comentário:

Postar um comentário