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Não se precisa de tanto ritualismo, de tantos figurinos à volta do altar.
Solenidade
No início do mês, houve vários desfiles de rendas e bordados de moda eclesiástica em Portugal: em Fátima, Mafra e Lisboa, o cardeal norte-americano Raymond Burke, defensor (e praticante) do rito tridentino da liturgia, celebrou várias vezes a eucaristia. Ou, como ele e outras pessoas preferem dizer (numa linguagem que pretende demarcar tudo o “sagrado” e o “profano”), a “santa missa”. Até aí, tudo certo.
O problema está no aparato em volta do rito que se seguia a cada celebração. Num filme que circula em várias páginas da internet (aqui, por exemplo), pode ver-se o cardeal Burke, no final da celebração da eucaristia na Basílica da Santíssima Trindade, em Fátima. Durante nove minutos e meio, vemos uma sucessão de gestos de tirar e pôr, vestir e calçar: rendas, sotaina, batina, casula, sobrepeliz rendada, luvas, tricórnio... o mostruário de vestes é extenso, numa sessão que parece saída de um museu que se julgava encerrado em curiosidades históricas.
Teria a última ceia de Jesus sido esta passerelle? A acreditar na narrativa do evangelho segundo São João, não terá sido esse o caso, bem pelo contrário: “Enquanto celebravam a ceia, Jesus (...) levantou-se da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que atara à cintura. (...) Depois de lhes ter lavado os pés e de ter posto o manto, voltou a sentar-se à mesa e disse-lhes: ‘Compreendeis o que vos fiz? (...) Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também. (...) Uma vez que sabeis isto, sereis felizes se o puserdes em prática.” (João 13, 3-17)
Quando se vai à missa, vai-se a um encontro “vivo, não a um museu”, disse o Papa Francisco, nem de propósito, na audiência da passada quarta-feira, dia 15. O que é dramático, e deveria motivar a reflexão, é que estes rituais e vestes atraem muita gente – e, também, muita gente nova. Tal como sucede em outros âmbitos sociais e culturais, vivemos hoje tempos em que o que fascina é o rito, a forma, o aparato, a aparência – quase sempre, como manifestações de poder ou do poder do dinheiro. Seja na televisão, nas praxes acadêmicas, na hierarquização profissional, na política, o que conta é a forma e a ostentação e não o que se é, o que se pretende ou o que se pensa. Aliás, a dado momento do filme, parece estarmos a ver um desfile de praxe acadêmica. Quase no final, uma menina posa para a fotografia, fazendo lembrar os concursos de televisão em que as crianças são usadas como extensões ou bonecos nas mãos dos adultos.
No próprio domingo em que o cardeal Burke celebrou a eucaristia em Lisboa, o texto do evangelho lido na liturgia católica de domingo, dizia, nas palavras de Jesus: “Os doutores da Lei e os fariseus instalaram-se na cátedra de Moisés. Fazei, pois, e observai tudo o que eles disserem, mas não imiteis as suas obras, pois eles dizem e não fazem. (...) Por isso, alargam as filactérias e alongam as orlas dos seus mantos. Gostam de ocupar o primeiro lugar nos banquetes e os primeiros assentos nas sinagogas. Gostam das saudações nas praças públicas e de serem chamados ‘mestres’ pelos homens.”
Também se percebe que a constelação de pessoas que navega por estas ideias religiosas coincide, em grande parte, com setores economicamente mais poderosos, com as pessoas que politicamente aderem a ideias populistas de novo tragicamente em voga e com os que recusam sociedades multiculturais.
No interior da Igreja Católica, várias vozes começam a manifestar o mal-estar em relação a estas manifestações passadistas: no Correio do Vouga de 8 de Novembro, o padre Manuel Rocha, vigário-geral da diocese de Aveiro, escrevia que não se precisa de “tanto ritualismo, de tantos figurinos à volta do altar, de tanto salamaleque diante e ao lado ou atrás do sr. cardeal. Às vezes, roça o mau gosto.”
O cardeal Burke, no entanto, em entrevista concedida à Rádio Renascença, considera que a liturgia perdeu complexidade. “A culpa, diz, é em parte da reforma litúrgica levada a cabo depois do Concílio Vaticano II, que despiu a liturgia de alguns dos seus ritos mais complexos. ‘Desenvolveu-se uma ideia de que de a Santa Missa e outros ritos litúrgicos eram atividades humanas, as pessoas começaram a fazer experiências e a fazer coisas que distanciaram os ritos contemporâneos daqueles que existiam na Igreja há séculos’” (aqui pode ler-se o essencial da entrevista). Serviria, aqui, nova comparação com a “complexidade” de que se terá revestido a última ceia de Jesus?... O cardeal Burke prefere a complexidade mas recusa a reforma do Concílio Vaticano II, que pretendeu “promover tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo” levar os crentes a participar na liturgia de forma mais “consciente” e “ativa”, como diz a constituição conciliar sobre a liturgia.
É significativo, por outro lado, que nenhum bispo português – e, nomeadamente, os de Leiria e Lisboa, dioceses onde Burke celebrou – tenha acompanhado o cardeal nestas suas andanças passadistas. Mas, para esclarecimento dos mais incautos, teria sido útil uma nota dos bispos a esclarecer que aquele rito já não é o mais usado pela Igreja.
Há, nestes episódios, um elemento positivo: a discordância passou a ser legítima na Igreja Católica. Durante três décadas (não vou mais atrás, aos séculos do Renascimento e da Inquisição), todos ouvimos dizer que não se podia discordar do Papa e dos bispos. Felizmente, os mesmos que diziam que não se pode discordar do Papa, são os que agora defendem que se pode (e até deve, em alguns casos) divergir do que diga ou pense o Papa. Mas a mudança, pelos vistos, é boa consoante a direcção do vento...
Religionline
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