sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Dieta de Santo Inácio: comendo santamente

domtotal.com
Inácio propõe uma dieta no livro dos Exercícios Espirituais intitulando-a 'Regras para ordenar-se no comer de agora em diante'.
Uma alimentação sã é uma alimentação santa.
Uma alimentação sã é uma alimentação santa. (AP Photo/Andrew Medichini)
Por Gilmar Pereira*

Dizia-se que “barriga de padre, cemitério de galinhas”. A verdade é que, em cada casa visitada, os religiosos sempre foram aguardados e recebidos com boas iguarias. E ai daqueles que não comem! A atitude ainda é tida como desfeita ou que a comida não está do agrado da ilustre visita, o que causa certo incômodo. Comer acaba sendo uma atividade pastoral.

Leia também:

Pecado da gula: quando os excessos nos privam do melhor
Não só de pão vive o homem: o pecado capital da gula
A miséria da gula
Alguns padres, entretanto, bem antes de Fábio de Melo e outros, sempre destoaram da imagem do comilão e bonachão. A vida ascética, marcada por jejuns e abstinências, construíram também no imaginário a ideia do sacerdote delgado ou mesmo franzino que, na austeridade de sua vida, vivia e morria doente – “Era um santo!”, exclamavam as paroquianas, lembrando-se de cada tosse tuberculosa.

Na contemporaneidade, quando se entende que o espírito do jejum não é simplesmente ficar sem comer, poderia a religião ensinar algo sobre reeducação alimentar? Há um livro chamado “A sabedoria dos jesuítas para (quase) tudo”. Título um pouco pretensioso, mas aponta para algo sério. Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, pensou muitas coisas interessantes e, por se situar no início da Idade Moderna, tem ensinamentos pertinentes para o ser humano de hoje. Sendo assim, até mesmo a questão da alimentação foi tocada por ele. Numa época que se fala de jejum intermitente, alimentação low carb e outras tantas formas de se relacionar com a comida, talvez uma dieta inaciana possa ser pertinente.

Entende-se por dieta, grosso modo, a construção de hábitos alimentares de acordo com as necessidades do corpo. Trata-se de uma reeducação dos modos de alimentação, não um receituário detalhado de um cardápio para cada refeição. Nesse sentido, Inácio propõe uma dieta no livro dos Exercícios Espirituais intitulando-a “Regras para ordenar-se no comer de agora em diante”. Ou seja, não se trata de uma penitência, mas indicações a respeito da temperança, virtude que visa o equilíbrio – oposto ao excesso da gula.

Pensando nisso, vamos buscar transpor as propostas inacianas para o universo nutricional. Pega seu prato e sua bíblia e vamos lá!

Relação corpo-espírito

Inácio não pensava o corpo e o espírito separadamente, mas como duas dimensões do ser humano. Ele era bem ciente que as disposições físicas alteravam o ânimo e vice-versa. É por isso que ele coloca as regras sobre o comer no livro dos Exercícios Espirituais. Estes são um método para “tira as afeições desordenadas” e “buscar e encontrar a vontade divina na disposição de sua vida” – dito de outra forma, melhor direcionar os afetos em vista da realização de si, conforme o projeto de Deus.

No início dos Exercício Espirituais, o santo de Loyola diz que “assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais”, algumas outras atividades que ele passa a descrever no livro são denominadas espirituais. O importante notar é que ele fala de algo que conhece bem, a caminhada. Inácio era um peregrino e os jesuítas eram enviados para longas distâncias, tendo que percorrer muitos trechos a pé. Quando o santo fala de comida, está presente uma sociedade e, sobretudo, um grupo que não fica parado. A alimentação está sempre conjugada à rotina de exercícios e atividades físicas. A chave inaciana está em aliar a educação do afeto à dupla exercício físico e alimentação equilibrada.

Ajuda profissional

Quem faz a experiência dos Exercícios Espirituais é chamado de exercitante. Este é acompanhado por alguém lhe propõe os Exercícios e que já fez a experiência anteriormente. Dada sua habilidade de compreender os movimentos do coração, é quem vai confrontar o exercitante nos seus propósitos. Inclusive, recomenda-se que o exercitante, antes de qualquer jejum ou mortificação, comunique sua intenção a quem lhe dá os Exercícios para que não se caia na tentação de uma intenção boa com final ruim. Ninguém deve alterar a alimentação sem consultar alguém experiente ou profissional. Não só porque pode lhe faltar algo necessário, mas também porque quem começa com ideias muito radicais, acaba abandonando o propósito inicial “chutando o balde”, ficando pior do que estava antes. O ator principal de um dieta é você, mas o acompanhamento de nutricionistas e profissionais de educação física colaboram na reeducação da vida.

Quando começar

Inácio propõe as “Regras para ordenar-se no comer de agora em diante” na terceira etapa dos Exercícios Espirituais. Isso quer dizer que uma série de disposições precisam estar resolvidas antes. Ora, nas etapas anteriores a pessoa fez privações e se purificou da desordem dos afetos, fez uma opção e buscou identificação com um projeto de vida (o de Jesus) e agora quer se unir mais intimamente a este ideal que contempla.

Importa, pois, que a motivação esteja clara num processo de reeducação alimentar. Há de se colocar algumas questões como “O que se quer com isso?”, “Porque se quer isso?”. Caso contrário, pode-se trocar a desordem afetiva por comer pela desordem do não comer ou alimentar-se mal. Nesse caso, o problema não é a comida, mas os afetos e a disposição de vida que se tem. A alimentação deve ser adequada à qualidade de vida que se quer ter.

Modelos a se seguir

Na dinâmica dos Exercícios, a pessoa vai se identificando com um aspecto do Cristo que revela, de alguma forma, aquilo que tem de melhor em si. Os Exercícios colaboram para que se seja profundamente você mesmo e na melhor versão de si (imagem e semelhança de Deus). Por isso, os modelos inacianos nunca são exteriores, mas são dados na contemplação interior. De modo parecido, uma reeducação alimentar não tomará como modelo nenhum artista famoso ou um instagrammer; cada qual deve ter o seu próprio potencial como referência, o seu melhor. Nas Regras, Inácio propõe que “enquanto a pessoa se alimenta, considere que vê Cristo Nosso Senhor comer com os seus Apóstolos, e como ele bebe, olha e fala, procurando imitá-lo”.

O método

A ideia de um método projetivo leva a pessoa a se moldar por aquilo que ela realmente reconhece como melhor. Mesmo em situações agitadas, esse processo é educativo. Como Jesus comeria com pouco tempo? Com “esganação” ou tomaria algo suficiente que pudesse comer bem? Levaria algo pelo caminho? Cada qual encontra no próprio profundo a medida do seu melhor. Olhando o Cristo, como modelo de ser humano, a pessoa se encontra. Essa é a ideia.

É interessante o motivo dado pelo santo espanhol para tal proposta de imaginação: “De modo que mais se ocupe a inteligência na consideração de Nosso Senhor, e menos no sustento do corpo, para que assim tenha mais harmonia e ordem no proceder e agir”. O que Inácio quer é que a pessoa não coloque o afeto inteiro na comida. Aliás, algo muito fácil quando estamos ansiosos. Comemos e nem sentimos. Por isso, mais adiante, diz para se tomar cuidado de “não colocar todo o ânimo voltado para o alimento”, nem comer “apressado pelo apetite, mas que seja senhor de si tanto na maneira de comer quanto na quantidade”.

As porções

O fundamento da dieta inaciana é ser senhor de si mesmo, não deixar que a comida o domine. Daí uma das regras muito úteis de Inácio ser “depois de comer ou em outra hora em que não sinta apetite, determinar consigo para a refeição seguinte – e assim dia a dia – a quantidade que convém”. Estabelecer metas é importante e é bom seguir um cardápio montado por um profissional. A ideia é não deixar que o desejo desordenado fale mais alto que a consciência do que é necessário.

Como nossa tendência é seguir o gosto, não a razão, Inácio acrescenta “Não a ultrapassará por nenhum apetite ou tentação. E ainda, para mais vencer todo apetite desordenado e tentação do inimigo, se for tentado a comer mais, coma menos”. Trata-se de um princípio inaciano conhecido como agire contra, que consiste em agir contrariamente ao impulso que leva ao desvio do projeto inicial. Se a vontade é de comer mais, comer menos; se é de não ir à academia, fazer mais um tempo a mais. Às vezes comportamo-nos como inimigos de nós mesmo e é preciso vencer-se a si mesmo.

O que comer

Inácio é claro quanto ao que se deve deixar ou comer. Deve-se evitar aquilo que tende a desordenar o apetite, admitindo-se o que traz “proveito” e rejeitando-se o que traz “dano”. Muitas coisas comemos não porque são gostosas, mas porque são saudáveis - algo difícil em uma sociedade que se move mais pelo gosto do que pelo dever. É por isso que a proposta inaciana parte de uma mudança de valores, buscando um referencial melhor ao qual buscará mimetizar, aplicando os próprios afetos nessa disposição. Na relação com a comida, uma das regras iniciais consiste em evitar os alimentos mais delicados e saborosos porque o “apetite é mais inclinado a desordenar-se e a tentação em insistir”. Assim, há dois modos de abstinência: habituar-se “a comer alimentos comuns” ou servir-se “pouco dos mais delicados”. Ou seja, não se trata de não ter prazer em comer, mas, negando-se, saborear mais. Essa a chamada indiferença inaciana, quando as coisas não são absolutas em si, mas estão ao seu dispor à medida em que lhe ajudam a alcançar o fim a que se deseja. Se não ajuda, evite-se; se ajuda, use.

Por fim, uma das regras mais importantes que Inácio cita é “cuidado para não adoecer”, para que não se tire aquilo que é necessário. Cada qual tem um motivo para buscar uma dieta, mas o fundamental é que se viva de maneira sadia, de modo são. Aliás, o são, o saudável e o santo são termos próximos. Uma alimentação sã é uma alimentação santa.

*Gilmar Pereira é mestre em comunicação e semiótica, teólogo, bacharel e licenciado em filosofia e fotógrafo. Gosta de ministrar aulas, dar palestras e de arte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário