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Honesto consigo e com os outros, nunca transigiu com o radicalismo ou a estupidez política.
Poucos foram tão independentes, incômodos e icônicos quanto Albert Camus. (Reprodução)
Por Jorge Fernando dos Santos
Poucos escritores se tornaram filósofos sem aderir à hipocrisia ideológica ou à tentação midiática do discurso fácil e demagógico. Poucos foram tão independentes, incômodos e icônicos quanto Albert Camus, aclamado como um dos grandes intelectuais franceses do século XX.
Autor de romances existencialistas, peças teatrais do gênero absurdo e ensaios filosóficos sobre a condição humana, Camus nasceu em Mondovi, na Argélia, em 07 de novembro de 1913. Seu pai morreu no ano seguinte, na sangrenta Batalha do Marne, na Primeira Guerra Mundial.
A mãe, pobre e analfabeta, assumiu sozinha a criação dos dois filhos, vendo-se obrigada a se mudar com eles para Argel. Na casa apertada, moravam Albert, seu irmão um pouco mais velho, a mãe, a avó e um tio surdo, tanoeiro. O futuro escritor quase seguiu essa profissão, não fosse um professor da escola primária, Louis Germain, que identificou seu talento para as letras.
Na infância miserável, é provável que Camus sequer tenha sonhado com a sorte que o destino lhe reservara. Não abandonou o curso secundário por dificuldades financeiras graças à ajuda de outro professor, Jean Grenier, que seria seu mentor. Observador arguto do mundo à sua volta, o jovem concluiu o doutorado em filosofia e se tornou um dos melhores repórteres do jornal “Le combat”.
Humanismo e revolta
No ano passado, a revista francesa “Les Hors – Série de L-Obs” publicou uma edição de 96 páginas intitulada “Camus, L’Éternel Révolté”, reunindo artigos e entrevistas sobre sua obra. A publicação celebrou os 75 anos da primeira edição do seu romance de estreia, “O estrangeiro”.
Narrado na primeira pessoa pelo personagem Meursault, o livro começa de maneira inusitada: “Hoje minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo. ‘Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem”.
A frieza da narrativa seca e telegráfica demonstrada no primeiro parágrafo logo chamou a atenção da crítica. Ainda jovem, o autor já mostrava estilo próprio e de rara objetividade. De temperamento inquieto, filiou-se ao Partido Comunista, mas acabou saindo devido às suas posições independentes.
Camus se opôs à independência da Argélia e tomou parte da resistência contra os nazistas durante a ocupação de Paris. Amigo de Sartre, rompeu com este devido a divergências políticas. O autor de “A náusea” apoiava o estalinismo incondicionalmente. Camus era contra e o criticou. Foi também um dos primeiros a protestar contra o uso da bomba atômica pelos EUA.
Vida rica, morte trágica
Poucos intelectuais do século XX contribuíram tanto para o pensamento moderno, a modernização literária e teatral quanto Camus – que também foi goleiro de futebol na Argélia. De sua pena nasceu uma obra humanista e libertária, que inclui, além de “O estrangeiro”, romances como “A peste” e “A queda”; peças teatrais como “Calígula” e “O mal-entendido”; além de ensaios filosóficos como “O mito de Sísifo” e “O homem revoltado”.
Além de grande escritor, Albert Camus era um homem charmoso, casou várias vezes, teve filhos, ganhou o Nobel, teve livros adaptados para o cinema, superou a tuberculose e enfrentou adversários de esquerda e de direita sem perder a ternura. Honesto consigo e com os outros, nunca transigiu com o radicalismo ou a estupidez política.
A obra camusiana se mostra cada vez mais necessária num mundo dominado pela intolerância e pelo hedonismo da sociedade do espetáculo. Felizmente, sua memória tem sido cultuada desde sua morte num acidente de carro, em janeiro de 1960. Ao lado do seu corpo, fora encontrado o manuscrito de “O primeiro homem”, romance inacabado e autobiográfico “très original”.
Jorge Fernando dos Santos
Jornalista, escritor, compositor, tem 43 livros publicados. Entre eles Palmeira Seca (Atual Editora), Prêmio Guimarães Rosa em 1989; ABC da MPB (Paulus), selo altamente recomendável da FNLIJ em 2003; Alguém tem que ficar no gol (Edições SM), finalista do Prêmio Jabuti em 2014; Vandré - o homem que disse não (Geração Editorial), finalista do Prêmio da APCA em 2015.
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